“Acordo entre União Europeia e Mercosul ficou improvável”
Em entrevista à DW, Barbara Fritz, professora de economia latino-americana da Universidade Livre de Berlim, afirma que eleição argentina e pressões agrícolas francesas frearam assinatura do tratado.Em meados de julho, sentada em sua sala no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, a economista Barbara Fritz sustentava algum otimismo com a assinatura do acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia (UE) até o fim de 2023. Observadora próxima das negociações, ela estava convencida de que os encontros do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com líderes do bloco – como o chanceler federal alemão, Olaf Scholz, e o presidente francês, Emmanuel Macron – expressavam a intensidade das conversas diplomáticas nos bastidores.
Mas ela também identificava no ar uma animosidade que, conforme os meses foram se passando, deixou de ser imperceptível mesmo a quem estava distante dos corredores onde o tratado foi sendo ressecado pouco a pouco.
Agora, faltando poucos dias para o fim de 2023, só restou pessimismo para a professora de economia latino-americana. Do lado da UE, a pressão dos produtores franceses, que já havia tensionado o debate no bloco, ganhou o apoio de alguns setores industriais – que chegaram a ser citados por Macron durante a COP28, em Dubai, em novembro, como os fabricantes de aço. De outro, o Mercosul ficou manco depois que o governo argentino mudou radicalmente de posição: saiu o peronista Alberto Fernández, fiador do acordo com a Europa, e entrou o radical de direita Javier Milei, que já demonstrou interesse até em tirar seu país do bloco sul-americano.
O retrato desse momento foi a cúpula do Mercosul, no começo do mês, no Rio de Janeiro – que era tratado até alguns meses como o evento em que Lula e seus homólogos assinariam o acordo em um grande espetáculo aos olhos do mundo, e até com a presença de Scholz. Com o fracasso da negociação e a eleição de Milei, a reunião passou despercebida.
Para Barbara Fritz, que se debruça sobre a economia brasileira desde os anos 1980 e, em paralelo, acompanha os debates econômicos europeus, o que sobrará agora são relações bilaterais, marcadas por proximidades em algumas arenas, mas distanciamento em outras, sobretudo pela relação cada vez mais intensa com a China. A seguir, trechos da entrevista da economista à DW.
Ainda há alguma chance do acordo entre o Mercosul e a União Europeia ser fechado?
Ficou mais complicado. A ideia era fechá-lo durante o período em que o Brasil estava na presidência temporária do Mercosul, o que não aconteceu [a presidência foi assumida pelo Paraguai no começo de dezembro]. Além disso, o resultado da eleição na Argentina fez o país mudar totalmente de posição. O novo presidente, Javier Milei, teve uma postura muito radical na campanha, ameaçando até deixar o bloco, embora tenha moderado em diversos aspectos depois da sua posse. Ainda assim, não há expectativas de que ele será tão simpático ao Mercosul, o que atrapalha as negociações. Sem contar que Emmanuel Macron [presidente da França] deixou claro, durante a COP28, em Dubai, que não é favorável ao texto como ele está hoje por causa das questões ecológicas. Então, na teoria, ainda há chances de o acordo sair há qualquer momento, mas na prática elas são bem menores.
A senhora já havia dito que, se não fosse em 2023, não haveria mais nenhuma chance. Sobrou alguma possibilidade para o ano que vem?
A posição europeia estava mais moderada, mas voltou a ficar divergente. Isso é importante de considerar. O encontro de Lula com Scholz, em Berlim, há alguns dias, foi até no sentido de batalhar para que o acordo saísse, o que me faz pensar que não é tão impossível que ele ainda aconteça. Mas, colocando a Argentina na conta, fica bastante improvável.
Qual é o peso da Argentina para o fracasso do acordo?
A eleição argentina impactou muito a negociação. Os países membros do Mercosul têm que ratificar acordos desse tipo e, nesse caso, a Argentina, tendo poder de veto, pode simplesmente frear tudo. Por outro lado, o bloco também ficaria muito abalado se os argentinos o deixassem — ainda que isso não pareça estar no horizonte de Milei agora. Com certeza, porém, ele não se engajará nesse tema, que envolve estabelecimento de regras e de fundamentos internacionais. Para o Mercosul, o resultado é uma perda significativa de poder de barganha na negociação.
Por que a Alemanha “batalhou pelo acordo” enquanto, ao mesmo tempo, a vizinha França o está descartando?
Isso acontece bastante na UE. Os países do bloco são bastante diferentes e, no caso do acordo com o Mercosul, há várias dimensões envolvidas, cujos impactos locais também são variados. O que é importante para Scholz — e Lula agiu na mesma direção — é a visão estratégia do acordo para ambos os lados, considerando posições geopolíticas de jogo que é jogado em um mundo multipolar. Para a América do Sul, seria um sinal claro de que os países do continente não estão totalmente voltados para a China, por exemplo.
Por outro lado, existem muitas questões setoriais específicas com papeis relativamente importantes para a negociação. Macron, por exemplo, está levando em conta o peso do setor agrícola francês — assim como ele faz em todas as mesas que a França se senta na UE. Há uma visão comum de que, no acordo Mercosul-UE, o agronegócio sul-americano sairia ganhando, e isso se transformou em uma questão sensível para os produtores franceses. Já para a Alemanha, com um nível de industrialização maior, especialmente no setor automobilístico, existem mais ganhos. Esses são os eixos centrais do conflito.
Além da demanda dos produtores na França, o que mais travou o acordo?
A UE aprovou recentemente uma lei que exige dos seus produtores um maior conhecimento sobre as origens de cada item que compõe seus produtos. É uma regra que envolve cadeias produtivas, portanto. Dentro dessa negociação, existia o temor de que o Brasil continuasse vendendo produtos agrícolas, como soja, oriundos de áreas desmatadas e, mais do que isso, houve uma discussão interna sobre quanto tempo o Brasil precisaria para se ajustar às novas regras europeias — já que, quanto mais isso demorar, maiores serão os efeitos ambientais para o planeta. Esse também é um eixo do conflito.
As posições contrárias de Alemanha e França geram alguma animosidade dentro da União Europeia?
Alguma coisa, sim, certamente. Mas como também existem vários pontos convergentes na relação entre ambos, como arranjos de migração e de apoio à transição ecológica, por exemplo, o assunto Mercosul acaba perdendo peso. Não cria um distanciamento fundamental. Claro que entra na lista de coisas que os dois países discordam, mas não é algo que está no centro do debate.
Sem o acordo, como fica a relação entre os países da América do Sul e a Europa?
Os países têm relações bilaterais entre si, ainda que com diferentes escopos. A integração econômica do Brasil com a Alemanha, por exemplo, não é das melhores, embora existam áreas em que ela funciona bem, como na indústria automobilística ou no fluxo de tecnologias, por exemplo. Há uma estabilidade de investimentos europeus em países sul-americanos nas últimas décadas que deve permanecer nos próximos 10, 20 anos com volumes até maiores do que de outros investidores do mundo. Ou seja, é uma relação que vai continuar dessa forma.
Além disso, os países europeus estão aprendendo a duras penas que, apesar de uma óbvia proximidade entre as duas regiões, principalmente porque elas são marcadas por regimes democráticos, essa relação não está sempre dada. Em votações da ONU, construções de parcerias estratégicas e relações econômicas, os países da América Latina têm se comportado estrategicamente até mais no sentido de excluir europeus – em alguns momentos e para certos setores. Haverá arenas em que eles estarão mais próximos da China e outras em que ficarão ao lado da Europa. A UE precisa aprender a lidar com isso, assim como os latino-americanos devem aproveitar para se realinhar nesses locais em que não estão ao lado nem do EUA nem dos chineses.
É possível pensar em outros acordos possíveis desses dois blocos?
A UE estava interessada em fechar com o Mercosul porque não conseguiu fazer um acordo com o Canadá. O bloco europeu vê negativamente esse cenário de ficar isolado em meio a diferentes relações de livre-comércio entre outras regiões do mundo. Obviamente, o peso da Europa entre os países avançados baixou nos últimos anos, muito pelo fator China, mas também por outros motivos.
TERRA