Arquivos do celular de Mauro Cid detalhadom plano do golpe
Em dezembro do ano passado, ninguém sabia ao certo o que o presidente Jair Bolsonaro planejava para o futuro. Derrotado nas urnas, não concedeu mais entrevistas, desapareceu das redes sociais e se isolou no Palácio da Alvorada. Pessoas próximas diziam que ele estava deprimido e inconformado. Só havia uma explicação plausível para a vitória que era tida como certa e não veio: fraude. Uma parte do ambiente do presidente ajudava a alimentar essa suspeita. Descobre-se agora que esse mesmo ambiente foi muito além e arquiteto tambému um plano que precede anular a eleição, afastar os ministros do Supremo Tribunal Federal(STF) que supostamente teriam interferido no resultado e colocado o país sob intervenção militar até que um novo pleito fosse realizado. Em outras palavras, engendrou-se um golpe para manter Bolsonaro no poder. O roteiro da trama foi encontrado no telefone celular do tenente-coronel Mauro Cid , ex-ajudante de ordens do ex-presidente da República.
VEJA teve acesso ao documento, que tem três páginas e é intitulado “Forças Armadas como poder moderador”. O plano se sustenta numa tese controversa segundo a qual os militares poderiam ser convocados para arbitrar um conflito entre os poderes. A derrota de Bolsonaro, de acordo com muitos de seus apoiadores, teria como causa decisões inconstitucionais proferidas durante a campanha eleitoral pelos ministros do Supremo que também integram o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Esse seria o ingrediente principal, mas não o único, do conflito que justificaria a intervenção militar. “Entende-se que o conjunto dos fatos sentidos seria capaz de demonstrar não só uma atuação abusiva do Judiciário, mas também abuso ouvido pelos maiores conglomerados da mídia brasileira,
O documento, que não é aquela minuta encontrada com o ex-ministro Anderson Torres, ensina o passo a passo do golpe. O presidente da República encaminharia um relato das inconstitucionalidades praticadas pelo Judiciário aos comandantes das Forças Armadas, que avaliariam os argumentos. Se concordassem, nomeariam um interventor investido de poderes absolutos. De início, ele fixaria um prazo para o “restabelecimento da ordem constitucional”. Na sequência, suspenderiam decisões que considerariam inconstitucionais — a diplomação de Lula, por exemplo —, afastariam preventivamente os ministros do STF — Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, que na época integravam o TSE —, convocariam os substituídos — Kassio Nunes Marques , André Mendonça e Dias Toffoli —,
O roteiro do golpe faz parte de um relatório de 66 páginas produzido pela Diretoria de Inteligência da Polícia Federal. Os especialistas escrutinaram mensagens de WhatsApp, áudios, backups de segurança e arquivos armazenados pelo auxiliar do ex-presidente em seu aparelho celular. O conjunto do material não deixa dúvida de que nos últimos dias do governo Bolsonaro havia gente graúda empenhada em atentar contra a democracia. Exemplo da minuta encontrada em fevereiro na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, os documentos apreendidos com Mauro Cid também têm como alvos primordiais dos magistrados do STF e do TSE. Para atingir esses alvos, são consideradas diversas possibilidades. No telefone do ex-ajudante de ordens foi encontrado um segundo documento, que avaliava até a hipótese de decretação do estado de sítio,
Algoz do bolsonarismo, Alexandre de Moraes é citado nominalmente como justificativa para a decretação do estado de sítio. “Nestas eleições, o ministro Alexandre de Moraes nunca poderia ter presidido o TSE, uma vez que ele e Geraldo AIckmin possuem vínculos de longa data, como todos sabem”, diz um trecho do documento. Prestes a julgar o ex-presidente em uma ação judicial que pode declará-lo inelegível, os juízes do tribunal foram classificados como militantes que tomaram decisões contrárias aos interesses de Bolsonaro durante o julgamento, como não dar seguimento à acusação de rádios que haviam suprimido inserções de propaganda do então presidente ou guarda à ofensiva de militares para auditar as urnas eletrônicas. Não se sabe quem é o autor do texto, o que dificulta a identificação dos conspiradores. A análise do conteúdo do celular de Mauro Cid,
O coronel Jean Lawand Junior surge como um dos mais eloquentes apoiadores do golpe. Subchefe do Estado-Maior do Exército, ele trocou uma série de mensagens com Mauro Cid do início de novembro, logo depois das eleições, até o fim de dezembro, às vésperas de Bolsonaro deixar o país em direção aos Estados Unidos. Em uma delas, sugere, sem maiores medidas, que Jair Bolsonaro precisava “dar a ordem” para que as Forças Armadas agissem. “Ele tem que dar a ordem, irmão. Não tem como não ter sofrido”, escreveu. Em outro diálogo, insista: “Convença o 01 a salvar esse país!”. Cid responde com um enigmático “Estamos na luta!”. Em um áudio enviado ao então ajudante de ordens, o coronel insiste. “Pelo amor de Deus, Cidão. Pelo amor de Deus, faz alguma coisa, cara. Convence ele a fazer. Ele não pode recuar agora. Ele não tem nada a perder. Ele vai ser preso. O presidente vai ser preso. E, pior, na Papuda, cara”. Mauro Cid, de novo, não rechaça a sugestão golpista do colega e ainda diz que Bolsonaro não deu a ordem de intervenção militar porque “ele não confia no ACE”. ACE é uma referência ao Alto-Comando do Exército, a cúpula formada por generais e pelo ministro da Defesa.
A pressão para que o ajudante de ordens convença o presidente a “dar a ordem” vai se intensificando com a aproximação do fim do mandato. Em uma outra mensagem, Lawand retransmite a mensagem de um amigo que afirma ter se encontrado com o general Edson Skora Rosty, subcomandante de Operações Terrestres, e este lhe teria assegurado que se “o EB receber a ordem, cumpriu a obediência”, mas, “ de modo próprio, o EB nada vai fazer porque será visto como golpe. Então, está nas mãos do PR”. EB é a sigla do Exército Brasileiro. PR é uma referência ao ex-presidente Bolsonaro. “Se a cúpula do EB não está com ele, de divisão para baixo está”, reforça. O insistente e inconformado Lawand é dono de um currículo elogiável. Já comandou o 6º Grupo de Misseis e Foguetes, considerado uma base estratégica, e foi condecorado por Bolsonaro com a Ordem do Mérito Militar. No ano passado, assumiu uma das subchefias no Estado-Maior do Exército. Recentemente, já no governo Lula, foi destacado para assumir o cargo de representante militar em Washington, nos Estados Unidos. Procurado, o coronel Lawand disse que Cid é seu amigo, que conversavam requisitos e que não se recorda de nenhum diálogo de teor golpista. O general também diz não se lembrar da conversa.
O relatório da PF também destacou mensagens de Gabriela Cid, mulher do ex-ajudante de ordens, que teve o celular apreendido na investigação da fraude do cartão de vacinação. Em depoimento sobre esse caso, ela confirmou aos médicos que usaram um certificado falsificado pelo marido. Gabriela aparece como uma militante aguerrida. Faz convocações para que apoiadores de Bolsonaro “invadam” Brasília, prega uma paralisação dos caminhoneiros e ataca Alexandre de Moraes. Em um diálogo com Ticiana Villas Bôas, filha do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, travado logo depois do segundo turno das eleições, ela prega a necessidade de um novo pleito e a adoção do voto impresso. “Estamos diante de um momento tenso onde temos que pressionar o Congresso”, diz. A filha do general responde de maneira incisiva: “Ou isso ou a queda do Moraes”.
Cid também fazia parte de um grupo de WhatsApp com “militares da ativa” batizado de “Dosssss!”. A PF não identifica esses militares, mas lista mensagens com pregação golpista e uma ameaça a Alexandre de Moraes, o “careca”. “Estejamos prontos… A institucional já ocorreu… Tudo que foi feito agora, da parte do PR, FA e tudo mais, não vai parar a revolução do povo”, diz um militar. “Vai ter careca sendo arrastado por blindado em Brasília?”, questiona outro. Enroscado agora até o pescoço na conspiração golpista, Mauro Cid representa o que existe de mais próximo às coxias do governo Bolsonaro. Ele estava ao lado do chefe em praticamente todas as viagens, era responsável pela seleção dos conteúdos das lives semanais (inclusive aqueles que contestaram o sistema eleitoral), pela agenda presidencial e pela solução de toda sorte de problemas relacionados ao capitão. Além da falsificação dos cartões de vacina, ele já se envolveu em outras tramas mal explicadas, como uma operação de resgate de joias milionárias presenteadas por xeques árabes à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. Em uma recente entrevista a VEJA, o ex-presidente conto que considera o antigo auxiliar como um “filho”. Essa proximidade naturalmente alimenta uma série de teorias.
A última mensagem trocada entre Mauro Cid e Lawand ocorreu no dia 21 de dezembro. O coronel diz que soube que, apesar dos esforços, “não vai sair nada”, se diz decepcionado e ressalta que “entregamos o país aos bandidos”. O então ajudante de ordens, lacônico, responde: “Infelizmente”. Não se sabe se as propostas golpistas foram levadas ao presidente. Em entrevista a VEJA, Bolsonaro foi questionado se seus aliados apoiavam uma sublevação. Ele permitia que as pessoas do seu ambiente defendessem, “em tom de desabafo”, que algumas decisões de processamento não eram atendidas e demonstravam interferências com as interferências incorretas no Executivo ao longo de todo o seu mandato. O ex-presidente afirmou, no entanto, que jamais levou as sugestões a sério e que isso inclusive gerou uma “inimizade” interna. “Alguns acharam que os caras estavam jogando fora das quatro linhas. Em muitos casos, estavam. Eu tinha que jogar também. Então falei: ‘Quando der um passo fora, f… geral’”. Preso há mais de um mês, Mauro Cid era um dos que queria jogar fora das quatro linhas.
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