Auditoria do TCM aponta pedalada fiscal da gestão Nunes na educação de SP
Um relatório do TCM (Tribunal de Contas do Município) aponta irregularidades na prestação de contas da Prefeitura de São Paulo na gestão Ricardo Nunes (MDB), que podem levar à sua rejeição por descumprir o gasto mínimo em educação exigido pela Constituição federal. O documento foi feito pela área técnica e ainda precisa ser apreciado e votado pelos conselheiros do tribunal.
O documento mostra que a prefeitura registrou quase R$ 1,5 bilhão em despesas no ano fiscal de 2021, mas as obras e os serviços só foram feitos a partir do ano seguinte, numa espécie de “pedalada fiscal”.
Esse valor foi empenhado —ou seja, reservado no orçamento para ser pago— a partir de quatro contratos, sendo que três foram assinados em 30 de dezembro de 2021.
Todos os estados e municípios são obrigados gastar em educação, no mínimo, 25% do total arrecadado em impostos. Sem o valor de R$ 1,5 bilhão, porém, as contas daquele ano atingem apenas o percentual de 22,7%.
A prefeitura informa que não houve irregularidade, contesta as conclusões da área de auditoria do TCM, ressalta que o caso ainda não foi julgado e que há decisões em tribunais de contas estaduais e da União que sustentam seus argumentos.
Afirma, ainda, que não há risco de o gasto com educação ficar abaixo do mínimo constitucional, mesmo se o tribunal julgar que os valores devem ser retirados da prestação de contas.
O plenário do TCM deve analisar dois processos que tratam do assunto em janeiro de 2024. O caso iria a julgamento na última quarta-feira (13), e um voto seria apresentado pelo conselheiro Roberto Braguim.
A análise foi postergada, pois o conselheiro João Antonio pediu vistas dos processos, prometendo apresentar seu voto na próxima sessão deliberativa, no início do ano. Se houver decisão desfavorável ao prefeito no plenário da Corte, o caso se tornaria, no limite, uma ameaça à elegibilidade de Nunes, que pretende concorrer à reeleição.
Entre os quatro contratos analisados no relatório, há dois que correspondem a cerca de R$ 1 bilhão empenhado, a maior parte do valor contestado. Eles foram firmados no penúltimo dia de 2021 pela prefeitura e pela empresa municipal SP Obras, que ficou responsável por elaborar planilhas orçamentárias, executar licitações e gerenciar obras em escolas e centros educacionais.
Segundo o documento do TCM, os dois contratos somavam, inicialmente, o valor de R$ 94,8 milhões. Com base neles, a prefeitura emitiu 30 notas de empenho que chegam aos mais de R$ 1 bilhão.
Os valores foram então inscritos em restos a pagar, ou seja, despesas que ficam pendentes para os anos seguintes. O relatório do tribunal afirma que, para serem registradas dessa forma, é necessário que parte do serviço já tenha sido executada —o que não ocorreu. Algumas obras só tiveram início em 2023 e ainda não foram entregues.
Além de reformas e construção de escolas, outros dois contratos tratavam do fornecimento de uniformes escolares e de um jornal didático. Esses serviços foram entregues somente em 2022.
“As obras de responsabilidade da SP Obras, pelo menos à época —precisa verificar agora como está— não tinham projeto básico nem tinham sido licitadas”, disse João Antonio durante a sessão da quarta-feira passada.
Ele também lembrou que, em maio deste ano, os conselheiros do TCM emitiram um “alerta direcionado às secretarias de Governo, Educação e Fazenda a respeito do cumprimento do investimento mínimo com a manutenção e desenvolvimento do ensino, dos possíveis impactos ao seu cumprimento no exercício de 2023”.
Técnicos do TCM apresentaram o relatório no segundo semestre do ano passado, recomendando que os valores sejam retirados do cálculo das contas. Essa recomendação foi reafirmada em novas análises do tribunal.
A prestação de contas de 2021 da prefeitura foi aprovada pelo TCM, mas as despesas em educação foram separadas para uma análise mais aprofundada. Os conselheiros podem decidir cancelar o R$ 1,5 bilhão e, neste caso, deve haver consequências para a prestação de contas de 2023 —que será julgada no início do ano que vem.
Isso porque uma emenda constitucional aprovada pelo Congresso permitiu às prefeituras e governos estaduais compensar a falta de gastos em educação de 2021 nos dois anos seguintes, por causa das distorções causadas pela pandemia de Covid-19 —escolas ficaram fechadas no primeiro semestre daquele ano.
Uma tabela enviada pela SP Obras à gestão municipal na última quinta-feira (14) mostra que, até agora, a empresa conseguiu executar menos da metade (46%) do valor das obras previstas nos dois contratos —a proporção considera aditivos contratuais que aumentaram o montante. A companhia pediu mais um ano para terminar os serviços, o que significa entregar as reformas e novas escolas até janeiro de 2025.
Além disso, outra pedalada também teria ocorrido nas contas de 2022. Segundo o relatório do TCM para o balanço da prefeitura do ano passado, a equipe de auditoria do tribunal considerou que R$ 1,78 bilhão foram registrados de forma irregular como despesas em educação, por meio da mesma prática.
Neste caso, com R$ 1,78 bilhão a menos, a prefeitura atingiria o limite constitucional (com 25,2% das receitas aplicadas em educação). Mas não seria o suficiente para cobrir um eventual rombo nas contas de 2021, caso o TCM decida que o valor deva ser excluído.
Especialistas ouvidos pela Folha, apontam uma possível manobra fiscal para cumprir o gasto mínimo com a educação. Questionados sobre os argumentos apresentados pela prefeitura, eles afirmaram que os valores deveriam ter sido registrados nas contas de 2022.
Para Gustavo Fernandes, professor de finanças públicas da FGV (Fundação Getúlio Vargas), trata-se “claramente de uma pedalada fiscal” e demonstra falhas de planejamento com a educação.
“A prefeitura não se planejou e, no fim [do ano] faz arranjos orçamentários [para cumprir a meta de 25% de educação]”, afirma Fernandes. “Restos a pagar não processados e gastos não realizados são, na prática, as mesmas coisas. Significa que o bem não foi entregue”.
Já o professor de administração pública Alvaro Martin Guedes, da Unesp (Universidade Estadual Paulista), diz que o caso tem indícios de um inchaço intencional nas despesas.
“Empenhar o valor contratual, tudo bem, não é irregular. Mas empenhar quando nitidamente se está abaixo do limite constitucional já indica uma má-fé. Empenhar e demorar tanto tempo para executar, também”, diz o professor.
Ele lembra que, apesar do risco de um processo de inelegibilidade, essa possibilidade por enquanto é remota. “O que torna [um chefe de Executivo] inelegível é não atingir os 25%, mas isso é um processo demorado. Precisaria passar pela Câmara Municipal e as contas serem rejeitadas.”
NUNCA SE INVESTIU TANTO EM EDUCAÇÃO, DIZ PREFEITURA
Questionada, a prefeitura informou que o documento “se refere apenas a apontamento feito pela área de auditoria do tribunal e contestado pelas áreas técnicas da Prefeitura de São Paulo, com suporte em extensa documentação e exemplos de outros entes da Federação”, e ressaltou que o caso ainda não foi julgado.
Disse, ainda, que a inscrição em restos a pagar de despesas pagas nos anos seguintes é “recorrente no setor público e autorizada expressamente pelas normas de contabilidade”. Além disso, afirmou que os mesmos argumentos se aplicam à análise das contas de 2022.
A gestão municipal disse que todo o valor total empenhado nos dois contratos com a SP Obras já está sendo executado totalmente, e que os valores já liquidados desses contratos são “mais do que suficientes para compensar eventual redução” que seja determinada pelo TCM.
“A Prefeitura de São Paulo lamenta que um tema de natureza estritamente técnica venha a ser usado de forma descontextualizada e equivocada, induzindo o cidadão paulistano a erro.”
Folha UOL