Bairros ricos concentram crimes digitais na capital paulista, mostram dados inéditos
Entre os dez bairros da cidade de São Paulo que mais registram ocorrências de crimes na internet, como golpes e vazamentos de fotos íntimas, todos podem ser considerados ricos em alguma medida.
Os setores que mais concentram casos de invasão de celular e outros delitos digitais, em ordem, são: Itaim Bibi, Jardim Paulista, Vila Mariana, Perdizes, Sacomã, Pinheiros, Tatuapé, Vila Andrade, Santana e Bela Vista. Entre esses, apenas Sacomã está entre os mais populosos.
Os dados sobre os 22.956 casos de invasão de celular e outros delitos digitais na capital paulista entre janeiro de 2019 e abril deste ano são publicados pela primeira vez por esta Folha, que os obteve via Lei de Acesso à Informação.
São estatísticas ausentes, por exemplo, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma vez que o estado de São Paulo não os divulga. Isso porque a Secretaria de Segurança Pública (SSP) não produz informação oficial sobre esses crimes, segundo nota da pasta enviada à reportagem.
Os dez bairros citados estão entre os 30 de maior conectividade à internet na capital paulista e oito deles estão entre os 30 mais ricos. O contexto de cada setor vem do mapa da desigualdade da Rede Nossa São Paulo, que traz dados de população, infraestrutura digital e trabalho e renda dos 96 distritos da maior cidade do país.
Para o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, Pablo Almada, a preferência dos criminosos é racional, uma vez que mira as pessoas de maior circulação na internet e que podem render mais dinheiro a cada golpe.
Além disso, o investimento em segurança em bairros nobres dificulta a execução de crimes tradicionais, como furto e assalto. Os delitos digitais servem como alternativa para burlar câmeras, guaritas, cercas e muros.
As ocorrências registradas têm a ver com o caso da jornalista Ana, 26, de 2021. Ela pediu para ter seu sobrenome preservado. Então moradora de Perdizes, pagou cerca de R$ 300 para encerrar seu MEI (microempreendedor individual) a um site que reproduzia a identidade visual do portal do governo. Esse serviço, entretanto, é gratuito nos canais oficiais e ela nunca recuperou o dinheiro.
“Confiei porque era o primeiro link que aparecia na busca do Google e o valor condizia com o que eu devia em termos de contribuição mensal”, diz Ana.
Depois do pagamento ela recebeu um email —um suposto escritório de advocacia dizia que iria auxiliá-la no encerramento da MEI—, o que a deixou desconfiada. Na sequência, buscou o nome do estabelecimento no site Reclame Aqui e encontrou dezenas de queixas de golpe.
Ela ainda tentou pedir o dinheiro de volta. Tal escritório lhe respondeu que não fazia reembolso. Isso estava indicado em texto no rodapé do site usado para o golpe.
No fim, Ana mesmo encerrou o MEI no portal do governo. O caso dela é diferente dos apresentados nesta matéria porque ela não registrou boletim de ocorrência. A jornalista, que se considera letrada em termos de internet, se restringiu a divulgar o esquema nas próprias redes sociais.
Essa é a realidade de muitas das vítimas de golpe, segundo especialistas em segurança ouvidos pela reportagem, para os quais a subnotificação é um desafio no combate ao crime digital.
“As pessoas muitas vezes não sabem que o golpe é crime. Quando sabem, duvidam da capacidade da polícia de resolver o caso”, afirma Pablo Almada, do NEV. Ele acrescenta que essa desconfiança da polícia, em geral, é maior em bairros mais pobres, onde há repressão do Estado.
O baixo índice de flagrantes corrobora a dificuldade das autoridades de encontrar os culpados pelos golpes. Somente 0,08% dos casos configuram flagrante.
A polícia não precisa estar ao lado da vítima na hora do golpe. As pessoas podem facilitar o trabalho das autoridades quando percebem a fraude, se tirarem um print ou gravarem o episódio, para configurar o flagrante.
É possível, contudo, que quem foi lesado leve dias até perceber o rombo deixado pelos estelionatários. Entre os boletins de ocorrência, 91,4% não têm horário do crime apontado e outros 4% indicam “em período incerto.”
Em qualquer caso de golpe, as autoridades recomendam o registro de boletim de ocorrência.
No país, são duas leis que tipificam os delitos digitais: a Lei de Crimes Cibernéticos, mais conhecida como Lei Carolina Dieckmann; e, a lei 14.155 de 2021, que prevê o crime de invasão de dispositivo informático.
É crime digital:
invadir dispositivo informático
comercializar informações vazadas
interrupção de serviço telefônico, informático ou de informação de utilidade pública
falsificar documento
falsificar cartão
cometer estelionato por meio de dispositivo eletrônico com ou sem violação de mecanismo de segurança, utilização de programa malicioso ou outro meio fraudulento
Em resposta ao pedido de acesso à informação da Folha, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo afirma que “o número total de boletins de ocorrências registrados sob uma natureza criminal não representa a estatística criminal do Estado ou de determinada área ou região.”
A estatística em São Paulo é contabilizada de acordo com os procedimentos estabelecidos por resolução da secretaria. Para isso, técnicos identificam repetições, corrigem dados imprecisos e realizam cruzamentos de informações a fim de garantir análise mais precisa.
Esse procedimento ainda não é feito no caso dos crimes digitais, segundo nota enviada pela SSP à Folha.
Vítimas de golpes podem registrar boletim de ocorrência em qualquer Delegacia de Polícia do Estado. A Polícia Civil também ressalta a importância da representação criminal na Justiça por parte da vítima.
Os dados se limitam a abril deste ano, uma vez que o pedido de informação foi feito no mês de maio. Questionada sobre a possibilidade de atualizar os dados via assessoria de imprensa, a SSP disse que compartilha esses dados apenas via LAI.
Folha de SP