Casais recorrem a contratos de namoro para resguardar bens e separar até contas de TV; veja como funciona

A meta do relacionamento da professora Luciane Popadiuk, de 41 anos, e do engenheiro Leandro Corso, de 42, é ser eternos namorados, literalmente. Juntos há cinco anos e sem interesse em constituir uma família, o casal é um dos que aderiram ao contrato de namoro para deixar às claras pontos cruciais da união, como não morar na mesma casa e cada um arcar com as próprias despesas. Caso a relação não tenha “um feliz para sempre”, a dupla também já definiu que não haverá divisão de bens, mesmo das contas dos serviços de streaming que assinam na televisão.
A história de amor do casal paranaense, de Curitiba, começou no final de 2019. Após três meses juntos, a mãe de Luciane ficou doente, veio a pandemia e Leandro passou a frequentar quase todos os dias a casa da namorada. Como não queria que a relação configurasse uma união estável, após uma conversa com uma amiga, que é advogada, Luciane sugeriu ao amado o contrato de namoro. A ideia era preservar a individualidade, sem perder a parceria.

— Eu sempre sonhei em casar, mas quando meus pais morreram, esse sonho morreu junto. Como ele também não queria, o contrato era a melhor saída, já que uma união estável, quando não acordada, gera toda a questão de partilha de bens. Não temos muitos bens e não entramos na relação pensando em terminar, mas não somos mais jovens e temos que ser práticos na relação ao que estamos construindo — afirma a professora.

Leandro garante que não ficou constrangido ao receber a proposta do contrato. A única surpresa foi saber que no Brasil existia esse tipo de documento:

— Foi muito natural. Eu já fui casado com regime de comunhão parcial de bens e, agora, não tenho mais interesse em casar. Fazer esse contrato não muda nada entre as pessoas, apenas nos respalda.

Fuga da união estável
No país, os contratos de namoro cresceram nos últimos anos. De acordo com levantamento realizado pelo Colégio Notarial do Brasil (CNB), foram celebrados 126 acordos desse tipo em cartórios no ano passado, o que representa um aumento de 35% em relação a 2022. Apesar de ser legalmente válido desde a atualização do Código Civil , em 2003, as declarações passaram a ser realizadas com mais frequência a partir de 2016. Deste período até maio deste ano, 608 escrituras do tipo foram feitas.

A advogada Regina Beatriz Tavares, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), explica que o contrato de namoro é uma forma de o casal negar a existência ou mesmo a intenção de formar uma união estável, evitando a discussão sobre bens. O objetivo principal é constituir uma diferença entre os dois relacionamentos e estipular regras, que podem incluir o uso de plataformas de streaming e até com quem ficará a guarda do animal de estimação em caso de separação.

O acordo pode ser lavrado por qualquer pessoa acima de 18 anos. Os namorados deverão apresentar os documentos pessoais e comprovação dos bens que desejam deixar registrados. Um tabelião de notas confere todos os dados. O valor do serviço varia, já que é definido pela lei estadual. Em São Paulo, o custo é de R$ 575,95, já no Distrito Federal, R$ 267,50.

— Um contrato de namoro é válido porque hoje o Código Civil tem brechas que não determinam que, em uma união estável, o casal precisa morar junto e qual o prazo mínimo para tal. Sem respaldo, após o termo do namoro, seja por desentendimento ou morte, uma das pessoas pode alegar que era uma relação pública e rigorosa, e exigir direitos à pensão alimentícia ou bens — pontual.

Jogador do Palmeiras, Endrick Sousa surpreendeu recentemente ao contar que possui um “contrato” com a namorada, a influenciadora Gabriely Miranda. Sem qualquer amparo jurídico, o casal declarou que o documento serve para manter um relacionamento saudável. As cláusulas proíbem a traição e determinam que é obrigatório dizer “eu te amo” e andar de mãos dadas, mesmo que estejam brigados.

Esse tipo de regra afetiva, no entanto, não tem validade legal, de acordo com o presidente da ADFAS, visto que “o romantismo não faz parte do direito das obrigações”.

Prova de desinteresse
O advogado Rogério Urbano, de 57 anos, decidiu propor o contrato à sua namorada antes de embarcarem em um cruzeiro, em 2015. Ele assumiu que tomou a decisão como forma de proteger seu patrimônio. Uma escova já tinha dente na casa do outro e Rogério não queria que, caso terminassem — o que de fato aconteceu —, a mulher pudesse cobrá-lo judicialmente.

— No caminho, antes da viagem, eu disse a ela que iríamos passar no cartório para revisar um documento. Expliquei que, por conta do meu patrimônio, eu queria só a parte do amor. Ela assinou e provou que não era interessante — brinca.

A engenheira Samira Miranda, de 35 anos, concorda com o advogado. Um paulista de Jundiaí conta que após levar um golpe de cerca de R$ 80 mil do ex-marido, com quem foi casado em regime de comunhão parcial de bens por 10 anos, resolveu aderir ao acordo de namoro em um segundo relacionamento. No contrato, proposto em 2020 após três meses de relação, ela especificou que o apartamento que morava — e ele dormitório com frequência— era dela, assim como o carro e todos os móveis e eletrodomésticos.

Vítima de violência doméstica, Samira conseguiu pôr fim ao namoro dois anos depois e o salvou de perder seu carro para o ex foi o acordo firmado entre as partes.

— No início do relacionamento acho que ele não colocava muita fé no contrato. Então, disse que, se isso me deixa mais tranquilo, converseia. Mas depois comecei a ficar abusivo, tentei me dar golpes, e quando eu consegui terminar ele saiu de casa com o meu carro. Eu só consegui recuperar porque já havia deixado no contrato que o automóvel era meu — diz.

Segundo o presidente da ADFAS, a reforma do Código Civil, em debate no Senado, deve alterar o texto da união estável, a fim de que os casais tenham mais segurança jurídica.

— Embora não haja uma mudança efetiva no conceito de união estável, o que se recomenda é aos namorados que aderirem ao acordo obterem duas testemunhas para observar o documento, a fim de ter mais provas — defende Tavares.

Possíveis cláusulas para o contrato
A advogada especialista em direito da família Daiana Kosteski explica que as cláusulas que podem ser inseridas no contrato são vastas, e cabe ao contexto fático de cada casal estipular novas regras na medida das necessidades e expectativas de ambos. Confira algumas opções abaixo:

Declaração de que o relacionamento é namoro e não possui a intenção de constituir uma família, diminuindo a data de início.
Definir regime de bens como prevenção caso haja evolução do relacionamento para união estável.
Inexistência de compartilhamento de dívidas.
Manutenção do patrimônio individual, estabelecer que as partes poderão apresentar um ao outro livremente, bem como manter o compartilhamento de cartão de crédito, título de clube, perfil nas redes sociais, serviço de streaming, que não implicarão na constituição de patrimônio comum, tampouco dependência financeira do outro.
Animais de estimação (guarda e custódia de despesas).
Inexistência de paternidade socioafetiva, se já tiver filhos.
Termo de namoro, com estipulação de prazo para entrega de pertences e devolução de presentes.

O GLOBO

Postado em 17 de junho de 2024