Cresce o número de brasileiros que criam abelhas ‘de sobrevivência’
É fato conhecido: há um declínio na população de abelhas pelo mundo, fenômeno que tem repercussões na flora e na produção de alimentos, uma vez que esses insetos polinizam os vegetais. Em 2017, o governo brasileiro esperava uma lei estabelecendo que os agrotóxicos a serem comercializados deveriam passar por testes de avaliação de risco com a Apis mellifera, a espécie mais numerosa e conhecida no país, embora tenha origem estrangeira. Mas uma devassa contínua. Ao debruçar-se sobre a questão, o Ibama constatou que as autoridades haviam esquecido de um ponto crucial nessa história: ainda que alguns pesticidas não fazem mal às abelhas mais comuns, eles podem acabar com as espécies nativas sem ferrão.
Existem cerca de 250 tipos desses insetos de berço tupiniquim. Eles perderam terreno com a introdução da Apis mellifera , a destruição das matas e o uso abusivo de defensivos agrícolas. Mas jataí, mandaçaia, uruçu e tantas outras são indispensáveis à manutenção da biodiversidade. Ao passarem de flor em flor, carregam o pólen e ensejam a fecundação das plantas, confiantes para sua renovação — 90% das espécies da Mata Atlântica dependentes disso. Há séculos, os povos indígenas e tradicionais também cultivam tais compostos para a produção de mel.
O risco de sobrevivência dos insetos sem ferro veio alimentar um movimento em ascensão. Na última década, a chamada meliponicultura — que contrasta com a apicultura, da Apis mellifera — se popularizou, inclusive em centros urbanos. Atividade conectada à preservação ambiental, a criação dos exemplares nativos atrai milhares de brasileiros que desejam ter um zumbido de caça. E quem sabe um mel diferenciado.
É nesse contexto que a Associação Brasileira de Estudos das Abelhas, em parceria com o pesquisador da Embrapa e da USP, publicou um e-book gratuito com dados e orientações sobre seis espécies nacionais, servindo de introdução e embasamento a quem quer se aventurar na meliponicultura. “Quando penso em abelhas, só vem à cabeça aquela que sobrevoa o refrigerante. Lançamos o livro para mostrar a riqueza da nossa fauna”, diz Ana Lúcia Assad, diretora da associação. Cada ficha da obra reúne informações para facilitar o reconhecimento e o manejo dos bichinhos, bem como entender seu comportamento. Nas plantações, elas auxiliam a aprimorar a produção de frutas, já que as compostas polinizam os pés.
O apreço pelo tema tem alavancado cursos de cultivo dessas espécies. “Eles são voltados para as pessoas que querem ajudar na preservação. Ensinamos quem são essas abelhas e sua importância, como cuidar delas e continuar protegendo o ambiente”, explica Celicina Ferreira, presidente da Associação de Meliponicultores do Rio de Janeiro, enfatizando a elevada procura nos últimos tempos. Outro de seus atrativos está no mel. Ou melhor, méis. Porque os produtos têm características diferentes de acordo com a cada espécie de flora. Quem experimenta sentirá sabor e acidez distintos da versão convencional — além do perfil nutricional superior. O alimento que vem das nativas sem ferrão já é até mais cobiçado no mercado: enquanto 1 quilo de mel comum custa cerca de 30 reais, o das brasileiríssimas pode bater os 300.
E não é por acaso que há quem tenha feito da atividade seu ganha-pão. “A ideia veio como uma fonte de renda adicional para equilibrar as contas na minha fazenda em Atibaia”, conta Eugênio Basile, empresário que, ao lado da mulher, Márcia, criou a Mbee, que produz e vende méis de abelhas sem ferrão e tem cinquenta fornecedores de treze estados. Seguir os passos de um meliponicultor não é algo de outro mundo. Equipamentos de proteção são dispensáveis, porque esses insetos não picam. Dá para criar as abelhas no quintal e mesmo em varandas. E é possível adquirir as caixas que servirão de colmeia já prontas. “As abelhas nos transformam, mudam nosso olhar sobre os cuidados com a natureza”, diz Cristiano Menezes, pesquisador da Embrapa e um dos autores do e-book. Já pensou em ter um exame de retenção?
Ela domina o pedaço
Quando penso em abelha, a imagem estampada na mente é a da Apis mellifera , com seu inconfundível corpinho preto e amarelo. Embora muito conhecida por aqui, ela não é originária do Brasil. A atividade apícola teve início no país em 1839, quando o padre Antônio Carneiro trouxe de Portugal algumas colônias dessa espécie. Desde então, as “invasoras” se adaptaram muito bem à flora tupiniquim.
Nos anos 1950, com a introdução das abelhas africanizadas — mistura da europeia com um tipo africano que se mostrou mais resistente a doenças —, a Apis mellifera estendeu seu império, tornando-se a espécie dominante no país.
As diferenças para os nativos sem ferrão começam pelo fato de elas terem… ferrão. Passam pelas características visuais e anatômicas e abrangem a própria estrutura das colmeias. As de origem estrangeira armazenam o pólen e o mel em favos, enquanto as nativas constroem potes e canudos para depositá-los. Outra distinção diz respeito ao número de machos com os quais a rainha acasala na natureza. As monarcas sem ferrão se reproduzem com apenas um elemento, enquanto a soberana das Apis mellifera se une, em média, a quinze parceiros.
VEJA