Dívida dos brasileiros volta a subir e já corroi 27% da renda, maior patamar desde o início do Desenrola

A parcela do orçamento das famílias brasileiras comprometida com o pagamento de dívidas voltou a aumentar e já está em nível semelhante ao período do lançamento do programa Desenrola, criado pelo governo Lula em 2023 para estimular a renegociação de débitos e reduzir o elevado endividamento dos brasileiros.
A trajetória de alta ficou mais clara a partir de dezembro de 2024. Em fevereiro deste ano, o último dado disponível, 27,2% da renda das famílias foi destinado ao pagamento de dívidas, segunda informações do Banco Central (BC). É o maior nível desde julho de 2023 (27,3%), quando foi lançado a primeira fase do Desenrola.
Segundo economistas, a piora decorre principalmente do crescimento da concessão de aumento de empréstimos no segundo semestre de 2024 e da taxa básica de juros (Selic), que, em 12 meses, foi de 10,5% a 14,75% ao ano, um recorde em quase duas décadas. A desaceleração econômica esperada com alta dos juros também deve afetar o quadro.
Em um período de aperto e endividamento em alto, os bancos impõem a restrições a oferta de empréstimos, e o que sobra para as famílias em dificuldades é recorrer a modalidades com juros mais altos, como o cheque especial, o rotativo do cartão e o crédito pessoal. Ou seja, a tendência é de aumento da contratação de dívidas mais caras, comprometendo fatia ainda maior do orçamento nos lares.
Inflação complicada
A escalada dos juros reflete o esforço do BC para frear a inflação, outro fator que estrangula as contas domiciliares. Mesmo com a desaceleração de abril, o IPCA acumulado em 12 meses ficou em 5,53%, acima da margem de tolerância (1,5 ponto percentual) da meta anual de 3%.
Entre os principais vilões estão os alimentos e serviços como transporte, que afetam mais o bolso das famílias mais vulneráveis ao endividamento. Com parte do orçamento consumido por dívidas e gastos fixos, muitos responsáveis por domicílios são levados a novos empréstimos.
Viúva, a aposentada Maria Regina Cordeiro, de 72 anos, vive em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, com uma filha que trabalha como autônoma e tem dificuldades de ajudar nas despesas sem uma fonte fixa de renda.
Na prática, a aposentadoria e a pensão do marido — que somam pouco mais de R$ 3 mil — têm de dar conta de todas as contas da casa. Ela faz algum ganho extra com um pequeno comércio de bairro porque praticamente toda a sua renda fixa está comprometida com contas mensais e prestações de empréstimos: R$ 2.800.
— Está tudo caro demais. Gás, água e alimentação. Tenho de bancar tudo sozinho. Tento me organizar, mas nem sempre consigo. Meus dois atrasos mínimos vão praticamente todos para pagar dívidas — diz Maria Regina, que se queixa também da alta do preço do café na padaria do bairro.
A lista de compromissos mensais dela é extensa. Ela destaca internet, contribuições previdenciárias da filha autônoma, um título de capitalização, seguros de cartão de crédito, alimentação, IPTU e gás de cozinha. Mas a principal preocupação da aposentada é escapar do cheque especial, os interesses giram em torno de 130% ao ano, em média.
— Costumo sacar o dinheiro quando recebo, tenho a impressão de que tenho mais controle. Antes de chegar ao fim do mês, tente não usar o cartão de débito para evitar o cheque especial. Quando entrar no especial, peço minha filha para fazer um Pix para sair dessa situação, mas nem sempre conseguimos — conta.
‘Abre daqui, cobre dá’
Em Piedade, na Zona Norte do Rio, a copeira hospitalar Alexandra Gonçalves, de 49 anos, viu uma parcela da renda familiar comprometida com dívidas engordar nos últimos meses. Ela divide o lar com o filho Alan, de 27 anos, gerente de uma pizzaria, e a neta Zoe, de 4, que tem autismo e recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
A renda familiar gira em torno de R$ 5.700. Em outubro do ano passado, Alexandra fez um empréstimo consignado vinculado ao benefício da rede, de R$ 14 mil, para arcar com despesas médicas. Desde então, parcelas descontadas e gastos fixos da família dão a impressão de que sobra um pouco para consumo.
— Hoje, quase R$ 3 mil vão só para pagar aluguel, alimentação, cartão de crédito, empréstimo consignado e cuidados com minha rede, que tem plano de saúde e precisa de assistência contínua. Tem mês que a gente abre daqui para cobrir dali — diz Alexandra.
O projeto foi bem sucedido, mas o problema parece ter ficado para trás
Segundo o economista Caio Napoleão, da consultoria MCM 4intelligence, o projeto foi bem-sucedido no plano de reduzir o comprometimento da renda da população. De julho de 2023 a fevereiro de 2025, o percentual mais baixo foi de maio de 2024 (25,8%), justamente o último mês de vigência do programa federal.
O Desenvolvimento incentivou a renegociação de dívidas contraídas até 2022 em bancos e outros setores, como varejistas e serviços públicos, mas o rompimento nas famílias parece já ter sumido com novas dívidas e juros mais altos.
Desde maio de 2024, diz Napoleão, cerca de 70% o crescimento do comprometimento de renda é explicado pela amortização do montante principal das dívidas, principalmente por conta do aumento do crédito pessoal, do uso de cartões e do financiamento de veículos.
O restante da piora está relacionado ao pagamento de juros, natural diante do aumento da Selic. Mas a renda, outro componente da descoberta, ajudou: cresceu 9,5% entre maio de 2024 e fevereiro deste ano.
— A renda cresceu bem, mas as famílias tomaram crédito com ainda mais ímpeto enquanto o BC começou a subir juros — frisa Napoleão.
Crédito do Trabalhador
A expectativa do governo e de parte do mercado é de que a situação seja melhor com a migração de dívidas viabilizada pelo recém-lançado Crédito do Trabalhador, que ampliou o acesso ao consignado a todos os trabalhadores com carteira assinada do país, mais de 40 milhões de pessoas. Mas isso depende do novo modelo ser usado principalmente para renegociar dívidas mais caras.
Com o desconto das parcelas na folha de pagamentos, o consignado tem juros menores e prazos maiores porque o risco de inadimplência para os bancos é mais baixo. Antes dessa reformulação, a modalidade para trabalhadores do setor privado era restrita às grandes empresas, que faziam acordos com bancos. Agora uma plataforma dá acesso a todos os trabalhadores formais.
Em pouco mais de um mês de operação, já foram concedidos R$ 10,1 bilhões em empréstimos consignados para 1,8 milhão de trabalhadores nessa nova modalidade, segundo o Ministério do Trabalho. Deste montante, R$ 2 bilhões são referentes à migração de dívidas antigas, mais caras, como o crédito pessoal.
Na avaliação da economista Isabela Tavares, da Tendências Consultoria, ao contrário do Desenrola, que foi um rompimento para famílias com a “corda no pescoço”, o novo consignado é uma mudança estrutural no mercado de crédito, com maior acesso da população a empréstimos mais baratos.
— A questão é monitorar o comprometimento da renda, ver se vai sair muito fora do que é esperado. Há uma perspectiva de redução no segundo semestre devido ao Crédito do Trabalhador. Os volumes de concessão são bem expressivos, ultrapassando até o consignado do INSS, que era o mais forte. Surpreende bastante — diz Tavares.
Além da nova linha de crédito, a equipe econômica entende que, para combater o alto comprometimento de renda com dívidas, é necessário aumentar o que chama de cidadania financeira, considerando a forte inclusão bancária dos últimos anos. Isso envolve programas de educação financeira, mas também maior proteção ao consumidor de serviços bancários no Brasil.
Governo quer prevenção
A avaliação do governo é de que os bancos precisam se envolver mais nesse aspecto para evitar que as famílias se cumpliquem e recebam o orçamento consumido por dívidas. O secretário de Reformas Econômicas da Fazenda, Marcos Pinto, diz que, em países como EUA e Inglaterra, os bancos são obrigados a avaliar a situação financeira dos tomadores de crédito e auxiliá-los a encontrar opções mais específicas a seus perfis para evitar o endividamento elevado.
— No geral, o Brasil precisa ter um foco maior na proteção dos consumidores de produtos financeiros. Já fizemos um trabalho de inclusão financeira e, agora, precisamos de um trabalho de cidadania financeira. Esse trabalho passa, por um lado, por educação e informação, mas também por proteção. Os países desenvolvidos têm isso — diz o secretário.
O Ministério da Fazenda está trabalhando em uma agenda de reformas para melhorar o ambiente de negócios e reduzir o custo do crédito no país. Uma das ideias é reorganizar a regulação financeira, redividindo-a em duas dimensões: a prudencial, que zela pela solidez das instituições e do sistema, e a de proteção ao consumidor. Essa reformulação é prioridade da Fazenda neste ano, mas a proposta ainda não está finalizada.
O tema também está na agenda estratégica do novo presidente do BC, Gabriel Galípolo. Regulador do sistema bancário, o BC informou que tem ações fortalecidas para promover a cidadania financeira no país. “A atuação da autarquia se dá junto à sociedade e junto às instituições financeiras; neste último, por meio de ações regulatórias e supervisão de conduta”, diz o BC, em nota.
O texto cita, por exemplo, uma norma de 2021 que exige dos bancos a adequação dos produtos e serviços oferecidos ou recomendados às necessidades, aos interesses e aos objetivos dos clientes e usuários. Também menciona a regra que limitou os juros no rotativo do cartão ao valor original da dívida e o teto de 8% ao mês no cheque especial.
O GLOBO