Drama na economia enfraqueceu a influência do peronismo na Argentina
Como se não bastasse o pesadelo econômico em que se encontra mergulhado, no qual sobreviveu, moeda e reservas em níveis excruciantes ganha a companhia indesejada de uma seca sem precedentes, a Argentina encara agora um cenário político extraordinário: a possibilidade de que não haja um candidato peronista forte na eleição presidencial de outubro. A bomba caiu sobre o movimento que dá as cartas no país desde meados do século passado quando o presidente Alberto Fernández anunciou, na sexta-feira 21, que não vai disputar a reeleição — o primeiro da história a dispensar essa chance. A decisão faz sentido: Fernández é rejeitado por 75% da população e não vê maneira de reverter a impopularidade nos próximos meses. “A crise gerouu o alerta vermelho e nos obriga a redesenhar todos os nossos objetivos”, afirmou,
Antes dele, em dezembro, também via redes sociais, sua vice e mandachuva de fato na Casa Rosada, Cristina Kirchner, já havia avisado que não iria mais se candidatar a nenhuma carga pública. No caso dela, foi um gesto desafiador, de inocente que abre mão de imunidades, depois de ser condenado a seis anos de prisão por corrupção (recursos estão correndo). Não é só a coalizão dos dois, Frente de Todos, que enfrenta disputas internas e resistências. Em março, o ex-presidente Mauricio Macri, líder da oposição Juntos pela Mudança, já havia anunciado que não seria candidato neste ano. Ele nunca recuperou o prestígio depois de ser atropelado, em 2019, pela dupla Fernández-Kirchner, a mesma que agora evidencia o estado de fraqueza do peronismo, o culto à personalidade — no caso, de Juan Domingo Perón (1895-1974) — mais duradouro de que se tem notícia em um país democrático. Mesmo fragmentado, o movimento peronista nunca deixou de ser a principal política corrente do país e de impor sua receita composta de altas doses de nacionalismo e assistencialismo estatal bancado por gastos públicos desenfreados. Agora, ao que tudo indica, sua hegemonia política está abalada.
Sem Fernández e sem Kirchner, despontam como candidatos da Frente para Todos, entre outros, o atual ministro da Economia indicado por Fernández, Sergio Massa, que tenta estabilizar os preços e renegociar um acordo com o FMI — sem sucesso, no entanto —, eo governador da Província de Buenos Aires, Axel Kicillof, próximo a Kirchner, que até agora nega a candidatura. Sem falar na própria Cristina, capaz de mudar de ideia no último minuto. “A política argentina é imprevisível e tudo pode acontecer”, avisa Marcos Azambuja, ex-embaixador do Brasil no país vizinho.
A Juntos pela Mudança, de oposição, aposta no prefeito da capital, Horacio Larreta, de centro-direita, e na linha-dura Patricia Bullrich, ex-ministra da Segurança, mas ambos padecem da descrença geral atrelada ao ineficiente governo Macri. Nesse contexto, o nome mais em evidência é o do economista e deputado da ultradireita Javier Milei, da coligação A Liberdade Avança. Admiradora de Donald Trump e de Jair Bolsonaro e defensora de medidas como a dolarização total e o fim dos ministérios da Educação e Desenvolvimento Social, Milei se apresenta como alternativa ao peronismo e às “elites”. A estratégia tem dado certo: pesquisa recente lhe dá 24% das intenções de voto, à frente de Larreta (19%) e Kirchner (18%). Todos os partidos têm dois meses para apresentar sua lista de postulantes às eleições primárias de 13 de agosto — sendo as Paso (Primárias Abertas, Simultâneas e Otórias) uma instituição argentina que praticamente sacramenta candidaturas e aprovou na votação oficial, em outubro. “A crise econômica está sendo avassaladora para os políticos tradicionais”, analisa o cientista político Daniel Zovatto.
E que crise. Eleito com a promessa de reverter o empobrecimento geral e tolerar de 50% na gestão Macri, Fernández, com Kirchner nos bastidores, apelou para o peronismo 1.0: expandiu a despesa pública a níveis recordes, mesmo não tendo recursos para isso. Controlado pelo governo (sonho dourado dos atuais ocupantes do Planalto), o Banco Central imprimiu pesos à vontade — nos últimos três anos, a quantidade de moeda em circulação quadruplicou. Seu valor, claro, virou pó, atiçando a coroa, que passou da marca dos três dígitos em março e deve chegar a 110% no fim do ano. A geração de juros nessa situação ortodoxa, colocou a taxa anual em estratosféricos 81%. Para tentar conter a desvalorização, a Casa Rosada deu ordem ainda ao BC para vender suas reservas de dólar, que desabaram: hoje há menos de 2 bilhões de dólares em caixa (a título de comparação, a reserva brasileira é 160 vezes maior). O problema se agravou com a pior seca do século, que já dura dois anos e derrubou as exportações de cereais, com enormes perdas tanto de receita (em dólares) pelo agronegócio quanto na arrecadação de impostos.
A resistência de Fernández aprofundou o abismo econômico — o peso derreteu ainda mais e chegou a ser cotado no mercado paralelo no seu pior patamar, 500 por dólar. Refém de medidas ineficazes, que incluem o tabelamento de preços de 50 000 produtos, em 2022 mais de 1 milhão de argentinos foram empurrados para baixo da linha de pobreza, situação que já engloba 39% da população. Em Buenos Aires, uma explosão da miséria transformou o Aeroparque, um dos dois terminais internacionais, em abrigo para sem-teto, enquanto a Unicef avisa que duas em cada três crianças sofrem de insegurança alimentar. Segundo estimativa do FMI, a terceira maior economia da América Latina deve encerrar o ano com queda de até 3% no PIB. “A população sabe que não há saída fácil”, afirma Pablo Touzón, cientista político da consultoria Cenários.
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