Em um mês, operação no Guarujá é uma das mais letais de SP
Ação deflagrada após assassinato de PM já deixou 22 mortos, se tornando a mais violenta desde o massacre do Carandiru. Especialistas criticam supostos abusos e falta de planejamento.Deflagrada após o assassinato do soldado da Rota Patrick Bastos Reis, a Operação Escudo, realizada pela Polícia Militar paulista na Baixada Santista, completa um mês nesta segunda-feira (28/08) e já é uma das mais letais da história de São Paulo. Com 22 mortos, a Escudo é a ação policial com mais mortes no estado desde o massacre do Carandiru, em 1992, que terminou com 111 detentos mortos.
De acordo com o balanço oficial divulgado pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) do governo Tarcísio de Freitas (PR), em 28 dias de operação as forças policiais detiveram 621 pessoas. Entre elas, 236 eram foragidas da Justiça. A SSP afirma ainda que no período foram apreendidas 82 armas e 900 quilos de drogas, o que teria causado um prejuízo ao tráfico que passa dos R$ 2 milhões.
A letalidade das ações realizadas principalmente no Guarujá é o maior alvo de críticas da operação. Segundo a Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo, das 22 mortes, em apenas três delas é possível confirmar que houve confronto entre policiais e suspeitos como alegado pela SSP.
“A Rota foi um dos primeiros batalhões a serem equipados com câmera corporal, e todos os policiais da Rota estão usando estes equipamentos”, destaca o ouvidor, Cláudio Aparecido da Silva. “Agora, como que de nove ocorrências, que é o relato que tenho até o momento que foram apresentadas pela Rota, apenas três delas possuem câmeras corporais?”, questiona. “A impressão é de que não houve qualquer planejamento, mas sim uma tentativa de se fazer justiçamento, e não de se fazer justiça”.
Em nota, a secretaria afirma que todos os casos de mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) estão em investigação pelo Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) de Santos, com o apoio do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), e pela Polícia Militar. A nota diz ainda que “o conjunto probatório apurado no curso das investigações, incluindo as imagens das câmeras corporais, tem sido compartilhado com o Ministério Público (MP) e o Poder Judiciário”.
A Operação Escudo foi deflagrada após a morte de Reis, baleado na comunidade Vila Júlia, em Guarujá, no litoral de São Paulo. Sua morte foi a primeira de um policial da Rota em ação nos últimos 40 anos. Reis participava de outra operação, a Impacto Litoral, lançada pouco mais de um mês antes “com o objetivo de combater os altos índices de criminalidade e da forte incidência do tráfico de drogas na região”, segundo a SSP. O cabo Fabiano Alfaya, que o acompanhava no patrulhamento, foi atingido na mão.
Erickson David da Silva, apontado como autor do tiro letal feito a mais de 50 metros de distância com uma pistola 9mm se entregou à polícia no dia 30 de julho, dois dias após o início da Operação Escudo, pedindo o “fim da matança” na Baixada Santista. Apesar de se entregar, ele nega ser o autor do disparo.
Na primeira semana da operação, dois policiais foram internados em estado grave após serem baleados à luz do dia, e no dia 15 de agosto, o delegado da Polícia Federal (PF) Thiago Selling foi baleado na cabeça durante cumprimento de mandado na Vila Zilda, e encontra-se internado no hospital Sírio Libanês, em São Paulo.
Sem haver um cálculo do custo total até o momento, ao todo a operação contou com a participação de mais de 2.000 policiais militares e civis. Para o ex-policial civil Roberto Uchôa, no entanto, o retorno obtido com o período de ações realizadas majoritariamente em comunidades pobres e favelas é questionável.
“Uma coisa que precisamos avaliar é que não houve tempo para planejamento, estratégia para uma operação desse tipo, o que leva a gente a crer que foi feito na emoção, com objetivo de ganho político”, avalia Uchoa, que é conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Quando se mistura política, com segurança e com emoção, o resultado nunca é positivo”.
Para Uchôa, a falta de planejamento e cálculo de gastos das operações policiais impede que a eficácia seja avaliada de modo completo e transparente. Na sua avaliação, as autoridades não realizam este cálculo, ao contrário do que é feito com outras áreas da administração pública, colaborando para tornar a segurança pública cara e ineficiente.
“Passa ano mais ano, a gente continua gastando cada vez mais dinheiro, e não consegue mudar a realidade da segurança pública, porque mesmo que os índices de homicídios estejam caindo nos últimos quatro anos, a sensação de segurança não melhora. Nas ruas os furtos continuam, os roubos continuam, a violência continua”, critica.
Ele defende ainda que qualquer operação policial que tenha como resultado a morte de um inocente ou de um policial deve ser considerada um fracasso independentemente do resultado.
Questionada sobre os custos da Operação Escudo, a SSP não se manifestou sobre o assunto. Um pedido de informação foi protocolado junto ao órgão por meio da Lei de Acesso à Informação, mas permaneceu sem resposta dentro do prazo legal de 20 dias.
Território conflagrado
O ouvidor Claudio Aparecido esteve recentemente nas comunidades do Guarujá e relata que a população local está aterrorizada, assustada, insegura. “Houve pessoas que me abordaram e falaram que estão dormindo à base de remédios. Uma senhora disse que não está deixando o filho sair de casa porque tem passagem na Fundação Casa [onde ficam internados menores infratores em SP] e que se pegarem, eles vão querer matá-lo, inclusive porque é tatuado”, conta.
“Se essa é a política de segurança pública que queremos entregar para a sociedade, há algum erro aí, porque as pessoas não deveriam estar assustadas com a polícia, mas se sentirem felizes, contentes, protegidas, mas elas estão pensando exatamente o contrário”, acrescenta Aparecido.
Último secretário de Segurança Pública não egresso da Polícia Militar, Mágino Alves considera injustas as críticas feitas aos órgãos de segurança do estado. Para ele, o território alvo da Operação Escudo é dominado pela criminalidade desde que ele comandava a pasta, entre 2016 e 2018, tornando qualquer ação na região passível de confrontos entre traficantes e autoridades.
“Não sou secretário e não conheço os bastidores da operação”, afirma Alves, “mas no mesmo período ocorreram operações em outros estados onde morreu o dobro de pessoas em confronto com a polícia, mas isso não vem sendo questionado e talvez seja porque não há motivo para questionar”, diz, citando massacres ocorridos na Bahia e no Rio de Janeiro.
Na Bahia, que recentemente tomou do RJ o posto de estado mais letal do país, com 1.464 mortes oficialmente em decorrência de confrontos policiais, 30 pessoas foram assassinadas em oito dias. Após críticas do Governo Federal, por meio do Ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, o governador Jerônimo Rodrigues (PT), afirmou que “eventuais excessos” serão apurados. No Rio de Janeiro, dez pessoas morreram e cinco ficaram feridas durante uma operação no Complexo da Penha no começo de agosto. Na mesma semana, duas crianças foram mortas em operações policiais.
“É injusto; é difícil falar que uma polícia é melhor do que outra, mas que a polícia militar de São Paulo é uma polícia de excelência e legalista, isso eu não tenho a menor dúvida”, diz Alves.
Perseguição a tatuados
A reportagem da DW teve acesso a dez laudos necroscópicos de vítimas de homicídio ao longo da Operação Escudo. Dos dez homens entre 22 e 40 anos supostamente mortos em confrontos com a polícia, nove deles possuíam tatuagens, confirmando o temor da população local de perseguição a tatuados.
“Eles dizem que matarão 30 onde meu primo foi morto e 30 onde o policial foi morto. De dia é perigoso, mas de noite é ainda mais, já que eles estão contando e comemorando os corpos; qualquer pessoa com antecedentes ou tatuagem, eles parecem ter ordem de matar”, afirmava ainda em julho o parente de um dos mortos.
Na avaliação da SSP, os laudos oficiais de todas as mortes, elaborados pelo Instituto Médico Legal (IML), foram executados com rigor técnico, isenção e nos termos da lei. Na nota enviada à reportagem, a secretaria afirma que “em nenhum deles foi registrado sinais de tortura ou qualquer incompatibilidade com os episódios relatados”.
Dentre os documentos acessados, no entanto, quatro chamam atenção pela natureza das lesões. Um homem de 24 anos “com múltiplas tatuagens pelo corpo” e passagem pelo sistema prisional foi morto com apenas um tiro na cabeça. Outro, de 22 anos, e também com passagem pelo sistema prisional, foi morto com quatro tiros, um deles a queima roupa no braço. Ele possuía uma tatuagem do Tio Patinhas, associada ao tráfico de drogas.
Jefferson Junio Ramos Diogo foi morto com quatro tiros, sendo um deles na coxa, um nas costas e um na cabeça. Também tatuado e com passagem na polícia, segundo o boletim de ocorrência ele foi morto em confronto com a polícia, mas a família registrou queixa sobre o caso na ouvidoria.
De acordo com familiares, Diogo era dependente de drogas e vivia nas ruas de São Paulo, próximo ao Terminal Rodoviário do Tietê. Segundo o relato, ele sacava no próprio terminal periodicamente pequenas quantias em dinheiro enviadas pela mãe para sobrevivência. Ele foi encontrado morto no Guarujá dias após o último saque, de R$ 15, com seis tabletes de maconha e grande quantidade de cocaína e crack.
“É um indivíduo que foi internado duas vezes pela família; se pegasse R$15, ia usar crack, não pegar um ônibus pra ir sem ter ninguém, nem o que fazer por lá”, avalia a ouvidoria, que recebeu a reclamação.
Já o laudo necroscópico de Felipe Vieira Nunes, 30 anos, morto com sete tiros por dois PMs da Rota em 28 de julho, omitiu queimaduras de pontas de cigarro nos braços, segundo o UOL, que comparou imagens do corpo com o documento. Segundo um perito, a comparação mostra que o médico legista José Eduardo de Menezes Sartori não cumpriu as exigências legais.
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