“Escravas virtuais”: como jovens submetem meninas a sessões de tortura na internet
Era de dentro do próprio quarto, um cômodo imundo e bagunçado no segundo piso da casa onde morava com os pais, em Mauá, na Grande São Paulo, que um adolescente de 17 anos promovia sessões de tortura com meninas que residiam a quilômetros de distância, pela internet.
Trajando máscara de caveira e ushanka (gorro típico da Rússia), o jovem dava ordens pela câmera do computador para que garotas de 14 a 17 anos de idade praticassem automutilação, esquartejamento de animais e até zoofilia. Ele não estava só.
Os abusos psicológico, físico e sexual também eram manipulados por outros adolescentes online e assistidos ao vivo por dezenas de jovens conectados no mesmo ambiente virtual. No Brasil, induzir a prática de automutilação ou expor a imagem íntima de menores de idade são crimes.
Todas essas cenas de terror ocorreram dentro de um aplicativo chamado Discord, criado em 2015 nos Estados Unidos e usado para troca de mensagens e reuniões em vídeo, inclusive no meio corporativo, e bastante difundido entre jovens que jogam games online.
Com os rostos cobertos ou as câmeras desligadas, e usando apenas apelidos para se identificarem, os agressores se sentiam protegidos pelo anonimato. As vítimas eram aliciadas no mundo real e na internet e depois se tornavam “escravas virtuais”, mediante uma rotina de chantagens e ameaças.
As humilhações diante das plateias nas salas fechadas do Discord eram o ápice da crueldade e do sadismo dos agressores. Como nada fica registrado na plataforma, eles mesmos gravavam as sessões de tortura para exibir em redes sociais ou continuar chantageando as vítimas.
Era o que fazia o adolescente de 17 anos de Mauá, que foi apreendido no dia 6 de abril pela Delegacia de Combate à Pedofilia da Polícia Civil de São Paulo. No quarto dele, os investigadores encontraram centenas de arquivos com as sessões de tortura. Entre o material apreendido, há vídeos como o que segue abaixo.
Descoberta das salas de terror
Uma denúncia feita à Polícia Federal do Rio Grande do Sul, no início de abril, indicou que jovens estariam usando salas do Discord para assistir, em tempo real, abusos físicos, sexuais e psicológicos. O alerta foi dado pelos pais de uma das vítimas.
O levantamento da PF indicou que os algozes da adolescente gaúcha estavam em outros estados, incluindo São Paulo, onde foi solicitado o apoio da Delegacia de Combate à Pedofilia, que é atrelada ao Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP).
Após um rápido levantamento, os policiais paulistas descobriram o endereço onde estava um dos computadores usados nas sessões de tortura online. Com um mandado de busca e apreensão em mãos, os investigadores foram até uma casa no bairro Jardim Cerqueira Leite, em Mauá, no dia 6 de abril.
Quando os policiais entraram na residência, o adolescente de 17 anos estava em frente a um computador, em um quarto imundo, com restos de comida e materiais de construção, no segundo piso da casa, longe dos olhares dos pais — uma professora e um zelador.
Segundo a investigação, antes do flagrante, o jovem permaneceu no quarto fomentando práticas violentas pela internet por aproximadamente 12 horas. Ao perceber a chegada dos policias, ele trancou o cômodo, desligou o aparelho e tentou ocultar provas.
“No momento da abordagem, o adolescente ostentava diversas marcas em ambos os braços, que indicam automutilação, já cicatrizadas”, diz trecho de registros policiais.
Aos investigadores, o jovem admitiu participar de grupos do Discord, acrescentando que dava ordens de “automutilação para garotas”. Depois disso, se negou a dar mais informações.
Ele foi enquadrado por utilizar-se de criança ou adolescente em cena de sexo explícito, por armazenar e transmitir esse tipo de conteúdo, por abuso de animais e instigação à automutilação e ao suicídio. Agora, está internado em uma unidade da Fundação Casa.
Com o adolescente, foram apreendidos três computadores e dois celulares. Em um dos aparelhos foram encontradas as provas dos crimes, além das identidades dos outros envolvidos na associação criminosa. A polícia já identificou cinco jovens, entre 17 e 22 anos.
Um deles, chamado Izaquiel Tomé dos Santos, de 20 anos, conhecido como Dexter no Discord, foi preso pela PF em Minas Gerais, no último dia 29. Até o momento, quatro vítimas, todas meninas e da região Sul do país, também foram identificadas nas investigações.
Como as vítimas eram aliciadas
O chefe de investigações da 4º Delegacia de Combate à Pedofilia, Alexandre Scaramella, afirmou ao Metrópoles que os jovens investigados escolhiam suas vítimas e as abordavam de três formas diferentes.
Uma delas era dentro do próprio aplicativo Discord, a segunda em outras redes sociais e a terceira com pessoas do convívio social dos suspeitos.
Em todas as situações, os abusadores conseguiam informações como endereço da casa, nome dos pais e detalhes da intimidade das vítimas, para convencê-las de que poderiam ser retaliadas caso não fizessem o que eles queriam nas sessões de tortura ao vivo.
“Alguns faziam vídeos das vítimas, seguindo as meninas, filmando a rotina delas, para municiar os demais integrantes dos grupos e fazer chantagem emocional, alegando saber onde elas estavam e o que estavam fazendo, por exemplo”, explica Scaramella.
Outra prática era conquistar as garotas na internet e estabelecer um namoro à distância até conseguirem fotos delas nuas. Em seguida, o material era usado para chantageá-las. “Caso as vítimas não fizessem o que os torturadores exigiam, eles ameaçavam divulgar as fotos, ou vídeos, para os pais das vítimas, ou ainda na escola onde elas estudam”, acrescenta o policial.
“Escravas virtuais”
Para evitar que suas imagens íntimas fossem divulgadas, as adolescentes se sujeitavam a situações impublicáveis, dada a crueldade exacerbada e o sadismo contidos nos registros feitos pelos agressores nas salas do Discord.
O Metrópoles assistiu a vídeos em que uma menina de 14 anos, do Rio de Janeiro, introduz uma faca na vagina após ter sido coagida a colocar pasta de dente nos olhos e no órgão sexual e beber desinfetante.
Em outro registro, uma garota aparece enforcando um gato. O animal de estimação aparece em outra imagem, já morto, com a cabeça arrancada, com o auxílio de um canivete. São inúmeros os vídeos e as fotos de meninas com os corpos cortados com lâminas.
“Quando analisei os vídeos, tentei pensar o que passa na cabeça do ser humano. Dá para ver que as vítimas estão nitidamente sofrendo, mas são tão escravas que nem se manifestam mais”, afirma o chefe de investigações da delegacia do DHPP.
Orientação aos pais
A Delegacia de Combate à Pedofilia orienta para que os pais procurem a polícia quando perceberem mudanças de comportamento nos filhos. O uso de roupas compridas, mesmo em dias quentes, pode ser um sinal de que os jovens estão se autoflagelando, por exemplo, e tentando esconder os machucados.
É orientado para que os responsáveis também monitorem onde e com quem os filhos se relacionam nas redes sociais. “Os pais precisam agir com carinho, nunca retaliando os filhos e acionar a polícia imediatamente”, recomenda o investigador chefe Alexandre Scaramella.
O que diz o Discord
Em nota, o Discord trata a questão das torturas ocorridas nas salas virtuais do aplicativo como ações de “fora da plataforma”. Segundo a empresa, esses comportamentos “podem, razoavelmente, criar um risco de segurança — ou até mesmo danos imediatos e graves” para seus usuários.
“Quando falamos de comportamentos fora da plataforma, estamos nos referindo a quaisquer comportamentos que ocorram fora do Discord, seja em outros espaços digitais ou em uma comunidade física”, diz a empresa.
O aplicativo acrescenta que uma equipe de segurança está capacitada para investigar contas suspeitas, “incluindo a revisão das atividades e postagens do usuário” que estariam pautadas nos comportamentos “fora da plataforma.”
“Estamos dando este passo para garantir a segurança de todos no Discord e nas comunidades em que vivem. Estamos aplicando essa consideração de comportamento fora da plataforma somente se tomarmos conhecimento das ameaças de maior dano, incluindo o uso do Discord para organizar, promover ou apoiar o extremismo violento; fazer ameaças de violência; e sexualizar crianças de qualquer forma”, conclui o Discord.
Metropoles