EUA e China travam disputa por hegemonia global em IA, em novo capítulo da corrida tecnológica

Na corrida da inteligência artificial (ou IA), gigantes americanas como Microsoft, Nvidia e OpenAI definitivamente tomaram a frente. Mas isso não significa que o páreo pela liderança desse mercado já tenha ganhadores definidos. Do outro lado do mundo, a China acelera para tentar alcançar o objetivo ambicioso de liderar essa tecnologia até 2030.
Um plano de Estado para o setor, um enorme mercado consumidor, grandes bases de dados e a excelência científica estão entre as vantagens competitivas da gigante asiática. Para liderar em IA, porém, Pequim precisa de desafios dribles como a dependência externa de chips e o atraso na criação dos chamados grandes modelos de linguagem (LLMs, pela sigla em inglês).

O cenário tem criado uma nova trincheira na longa e acirrada disputa comercial entre China e Estados Unidos , em uma espécie de Guerra Fria da IA, que envolve, por exemplo, bloqueios americanos para a venda de chips avançados ao país asiático.

— A China há muitos anos é tratada como a principal ameaça à hegemonia americana. A inteligência artificial se torna uma das facetas dessa disputa — resume a pesquisadora Luiza Nonato, doutora em Relações Internacionais pela USP.

Um plano de governo
A meta pública chinesa de alcançar a hegemonia em IA foi definida por Pequim em 2017, muito antes do assunto se tornar estratégico para o restante do mundo, na esteira do rápido sucesso do ChatGPT.

O objetivo foi reafirmado pelo Partido Comunista Chinês (PCC) no Plano Quinquenal que traça metas até 2025. O documento coloca a IA entre os sete domínios tecnológicos estratégicos para o crescimento socioeconômico da China.

Para desenvolvê-lo, o país estabelece que o orçamento nacional em pesquisa e desenvolvimento deve crescer 7% a cada ano até lá. A meta é que, com a ajuda da IA, a economia digital passe a representar 10% do PIB chinês.

— A China é um dos poucos países que não só entendeu a relevância da IA ​​para seu próprio desenvolvimento como também planejou e já está descobrindo, há quase uma década, esse plano para ser uma potência mundial na área — destaca Luca Belli, professor da FGV Direito Rio e coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Instituição.

O jogo dos seis erros da inteligência artificial

Uma das principais vantagens competitivas chinesas é a formação científica. Em 2019, 29% dos pesquisadores de alto nível em IA, no mundo, eram chineses. Três anos depois, eles representam a metade da elite global que desenvolve a tecnologia, segundo o pensamento da MacroPolo.

Com investimento em formação de pessoas e um mercado de 1,5 bilhão de consumidores, a China tem se beneficiado de um ambiente fértil para testar e implementar novas tecnologias de IA em escala — desde sistemas públicos de reconhecimento facial até os carros autônomos que circulam nas grandes cidades do país.

A ambição chinesa para liderar a IA, no entanto, ainda enfrenta obstáculos. A dependência externa de semicondutores avançados, principalmente dos EUA e de seus aliados, é um dos principais.

Otaviano Canuto, membro sênior do Policy Center for the New South e ex-diretor executivo do Banco Mundial, diz que a batalha força a China a criar estratégias locais para ter independência externa em peças fundamentais para o mercado da inteligência artificial:

— Estamos vendo uma batalha tecnológica no céu aberto entre as grandes potências globais. E, nesse caso, a China vai precisar subir a escada por conta própria. Eles não vão poder pegar carona no resto do mundo.

Essa é uma disputa que vem esquentando conforme avançam, em paralelo, o poder dos sistemas de IA e a demanda por semicondutores. Em outubro do ano passado, o presidente Joe Biden restringiu ainda mais as regras que barram a venda de chips para a China, com limitações estratégicas destinadas a serem usadas nas IAs. Os bloqueios ao país ocorreram em 2022.

Em resposta, Pequim ampliou o investimento em pesquisa e desenvolvimento no setor. Para este ano, o país prepara o lançamento do seu fundo maior para financiar o desenvolvimento de chips de ponta, no valor de US$ 27 bilhões, segundo revelou a Bloomberg no mês passado.

‘Valores Socialistas’
O modelo chinês de governança de IA é outra barreira para o país. Aprovada no ano passado, a regulação chinesa para as IAs generativas – aquelas que produzem textos e imagens a partir de comandos dos usuários – é simbólica desse entrave. O texto prevê aplicação de multa para empresas que criem serviços que não incluam “aos valores fundamentais do socialismo”, de acordo com o documento.

A tentativa, no fim, é de controlar o tipo de conteúdo gerado por esses serviços, avalia Dora Kaufman, professora da Pós-Graduação de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP e autora do livro “Desmistificando a Inteligência Artificial”:

— Foi aí, com a IA generativa, que a China perdeu o bonde. O controle rígido e a orientação do partido comunista chinês desencorajaram a inovação e a experimentação. Ficou quase impossível competir com as alternativas americanas.

Em contraste com as restrições chinesas, os EUA deixaram florescer um mercado de IA diante da ausência completa de regulação. Liderados pela OpenAI (do ChatGPT), os modelos americanos passaram a dominar o mercado de grandes modelos de linguagem.

Investimento público x privado
Para Luca Belli, do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV, a China “estava na trajetória” para superar os EUA no desenvolvimento da IA. O movimento, no entanto, foi impulsionado por uma série de regulamentações e decisões restritivas ao setor de tecnologia.

A diferença de abordagem entre EUA e China para IA ajuda a explicar a distância entre os dois países no fluxo de investimento privado para o setor. Em 2023, startups americanas de inteligência artificial receberam US$ 31 bilhões em transportes, 15 vezes o registrado na China. A falta de investimento privado para o gigante asiático, no entanto, é compensada pelo esporte pesado do governo nas empresas de tecnologia do país, lembra Dora:

— O processo de desenvolvimento da IA ​​pela China está bem distante dos Estados Unidos, onde as big techs lideram. Na China, tudo acontece a partir de uma estratégia definida pelo governo.

Com financiamento governamental, a China vem apostando em seu próprio clube de big techs, conhecido pela sigla BATX (Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi) para tentar quebrar o domínio americano. Aliadas a elas, estão também startups como a 4Paradigm e a 01.AI. Todos lançaram, no último um ano e meio, concorrentes ao ChatGPT.

Enquanto isso, no Brasil
Enquanto China e EUA disputam a hegemonia em IA, países emergentes como o Brasil têm se destacado, principalmente, como consumidores de tecnologia. Para mudar o quadro, não existe outro caminho a não o investimento consistente em tecnologia e inovação, avalia Belli:

— Sem colocar bilhões em pesquisa e desenvolvimento, é impossível ser liderança em IA.

Um estudo da Universidade de Oxford, que avalia a disposição de governos para implementar os IAs, posiciona o Brasil na posição 36º entre 193 países – os Estados Unidos lideram a lista, enquanto a China aparece em 16º lugar.

Para Otaviano Canuto, do Policy Center for the New South, o Brasil pode aproveitar vantagens competitivas trazidas pela inteligência artificial mesmo não sendo um produtor da tecnologia:

— O impacto positivo em termos de produtividade da IA ​​é onde ela é aplicada. Então o fato de você ter o grosso da IA ​​produzido em um determinado país não significa que os beneficiários, em termos de aumento de produtividade, não sejam os usuários de outros lugares.

O GLOBO

Postado em 15 de abril de 2024