Fogos de artifício com barulho provocam sofrimento em autistas, idosos e animais

Postado em 27 de dezembro de 2025

A chegada de períodos festivos como o Natal e o Ano Novo representam um período de medo, dor e angústia para milhares de famílias. O motivo é o barulho intenso provocado por fogos de artifício com estampido, ainda comuns pelo País afora, embora alguns municípios – como Natal – tenham leis que proíbem a soltura desse tipo de fogos.

Enquanto a lei é descumprida na capital potiguar, os estrondos têm provocado ansiedade, traumas e pânico em pessoas com maior sensibilidade auditiva, populações vulneráveis e em animais domésticos.

Em entrevista ao AGORA RN, Lídia Marly Souza relata que, no Réveillon passado, seus filhos Leonardo, de 8 anos, e Lina Maria, de 5 — ambos autistas — reagiram com medo extremo aos fogos. “O barulho inesperado e intenso gera desconforto, ansiedade e necessidade imediata de proteção. É uma reação comum dentro do espectro do autismo”, afirma. Segundo ela, o impacto foi tão significativo que marcou toda a família.

Estratégias frequentemente recomendadas, como o uso de abafadores de ruído, nem sempre são viáveis. “Eles não aceitam usar. O desconforto do contato do abafador é tão difícil quanto o barulho dos fogos”, diz Lídia, que é presidente do Instituto Leblue, criado para dar assistência a famílias atípicas.

Lídia conta que o cérebro da criança autista processa estímulos de forma mais intensa. Sons considerados apenas incômodos para a maioria das pessoas podem ser percebidos como dolorosos ou ameaçadores. Diante disso, ela defende estratégias que priorizem previsibilidade e acolhimento. “Avisar com antecedência, preparar o ambiente, fechar portas e janelas, usar sons contínuos, como música baixa ou ventilador, ajuda a suavizar os estouros”, orienta.

Quando não há tolerância a dispositivos, a regulação pode vir pelo corpo: colo, pressão profunda, presença tranquila. “O objetivo não é eliminar o medo, mas ajudar a criança a se sentir segura até que o momento passe”, acrescenta.

O Instituto Leblue foi criado por Lídia após o diagnóstico dos filhos. A organização atua com grupos de acolhimento online e eventos pontuais voltados a mães e cuidadores de crianças atípicas. “Cuidar de quem cuida é essencial para um cuidado mais humanizado”, afirma. Pós-graduanda em Neurociências pela Faculdade de Medicina da USP, graduanda em Psicologia e formada em Direito, Lídia transformou a experiência pessoal em militância por informação e apoio emocional às famílias.

A terapeuta ocupacional Magnólia Ansaldi reforça que a hipersensibilidade auditiva é uma característica frequente no autismo, embora se manifeste em diferentes intensidades. “O estrondo dos fogos chega a doer. É muito intenso. A criança fica ansiosa, estressada, tapa os ouvidos, grita, entra em desorganização total”, explica. Segundo ela, trata-se de uma sobrecarga sensorial que afeta o comportamento e o equilíbrio emocional.

Magnólia ressalta que a previsibilidade é uma das ferramentas mais importantes. “Avisar o que vai acontecer, mostrar vídeos, explicar com antecedência ajuda o cérebro a se organizar”, diz. Ela recomenda que, durante a queima de fogos, a criança permaneça em um ambiente conhecido, com pessoas de confiança, e que se tente o uso de abafadores ou alternativas improvisadas, como algodão nos ouvidos, além de abraços firmes e contenção afetiva. “O corpo também regula. Aproximar, acolher, tornar o ambiente seguro faz diferença”, complementa.

A terapeuta chama atenção ainda para outros públicos vulneráveis. Bebês e idosos, especialmente aqueles com quadros de demência, também podem apresentar crises de choro, agitação e confusão mental diante do barulho excessivo. “Não é só o autismo. O cérebro dessas pessoas também se desorganiza com estímulos intensos e inesperados”, afirma.

A médica Rochele Elias Carvalho é mãe de Alberto Barbalho, de 19 anos, estudante de gastronomia e autista nível 3 de suporte não verbal. Ela conta que indivíduos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) possuem processamento sensorial diferente, especialmente no que diz respeito à audição. Sons inesperados e altos podem causar desorganização sensorial, pânico, desestabilização emocional e sofrimento intenso.

Para pessoas com TEA e outras sensibilidades, o uso de abafadores de ruído é frequentemente necessário para minimizar o impacto dos estampidos. “Isso (fogos) é incômodo demais para eles. É algo que talvez a gente não entenda, mas quem fala diz que é uma dor insuportável, uma sensação insuportável. Ele não consegue ficar bem com esse barulho. E é importante que a gente respeite”, afirma Rochele.

Barulhos de fogos podem até provocar morte em animais
Para cães, gatos e demais pets domésticos, o efeito dos estampidos vai muito além de um incômodo passageiro. A médica veterinária Tabita Freire explica que os ouvidos dos animais são fisiologicamente mais sensíveis do que os dos humanos, o que torna os sons altos — como os provocados por fogos de artifício com estampido — potencialmente dolorosos e aterrorizantes.

O som súbito ativa o sistema de alerta e fuga nos animais, promovendo liberação de hormônios do estresse e gerando sintomas como taquicardia, tremores, pânico, desorientação e risco aumentado de acidentes domésticos e fuga. Em alguns casos mais graves, principalmente em animais idosos ou com comorbidades, há relatos de choque e até óbitos atribuíveis ao trauma provocado pelos estampidos.

Tabita Freire reforça que muitos tutores enfrentam diariamente situações de emergência durante períodos de maior uso de fogos, com animais chegando em choque ou já sem vida nas clínicas veterinárias.

Ela destaca que é essencial conscientizar a população. “O que pode ser feito para tentar conscientizar a população é mostrar que isso (soltar fogos) não é uma brincadeira, não é uma diversão, não é divertido ver um cachorro se debatendo, convulsionando”, afirma.

Aos tutores, a veterinária recomenda preparar ambientes seguros dentro de casa para reduzir o impacto no comportamento animal. Entre as dicas, estão o uso de difusores ou sprays com feromônios específicos para cães e gatos, desde que aplicados no local onde o animal ficará. Tabita também aconselha manter o animal dentro de casa, em um espaço mais fechado e seguro, com som ambiente contínuo ligado desde antes: “O animal vai se acostumar com aquele som”. Além disso, é preciso deixar os brinquedos por perto.

No momento dos fogos, ela ressalta a importância da presença do tutor, principalmente em casos de animais com comorbidades. “Estar presente junto ao animal, agir com calma, nada de afobação”. Tabita alerta que não se deve punir nem brigar com o animal. “Não punir o animalzinho pela situação que ele está passando”, além de verificar portas, janelas e portões, usar coleiras de identificação e, se possível, microchipar, para evitar fugas durante os episódios de pânico.

Vereador defende mais fiscalização para que lei seja cumprida
Desde setembro de 2024, Natal tem uma lei que proíbe o manuseio, a comercialização, a queima e a soltura de fogos de artifício com estampido, permitindo apenas fogos com efeito visual e sem barulho. A lei prevê multas ao infrator, que variam de 50% a 100% do salário mínimo, dobradas em caso de reincidência. Apesar da norma, a fiscalização e a conscientização da população seguem como gargalos na aplicação prática desta proibição.

O vereador Robson Carvalho (União), militante da causa animal, pede uma mudança cultural. “Peço a consciência da população: tenha empatia! Vamos cuidar uns dos outros e dos animais. Celebre com fogos visuais, que são lindos e seguros para todos! Vamos fazer a diferença!”, escreveu o parlamentar, em publicação nas redes sociais nesta sexta-feira 26.

Também pelo Instagram, Robson disse ter solicitado à Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (Semurb), que é o órgão fiscalizador, que notificasse todos os comércios em Natal que vendem fogos. “Esse é o primeiro passo. Vamos ampliar as fiscalizações junto à Semurb. É necessário o processo de conscientização da população também”, declarou.

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