Forte na era Lula, conservadorismo tenta se distanciar do bolsonarismo
Jair Bolsonaro tem dois feitos expressivos em sua carreira política. Em 2018, ele venceu a corrida presidencial por um partido nanico, com gastos franciscanos na comparação com os demais candidatos e com poucos segundos na propaganda eleitoral, implodindo o paradigma vigente até então. Em 2022, no entanto, tornou-se o primeiro presidente da República a fracassar na busca da reeleição, apesar de usar e abusar da máquina pública na campanha. Após deixar o cargo, o capitão foi considerado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e viu sua situação jurídica se complicar em múltiplos inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF), nos quais, segundo alguns de seus aliados, corre o risco até de ter a prisão decretada. Enquanto o ex-presidente enfrenta dificuldades pessoais, setores que o apoiaram e ganharam musculatura durante o seu mandato mantêm protagonismo no governo Lula, mostrando força no Congresso e influenciando ações do Executivo e do Judiciário. O conservadorismo está cada vez mais consolidado como força política e, pragmático, evita o radicalismo — e até o antigo patrono — para defender seus interesses.
Os novos termos da relação entre Bolsonaro e grupos que antes eram chamados genericamente de bolsonaristas são evidentes na Praça dos Três Poderes. Na terça-feira passada, os deputados Luciano Zucco (Republicanos-RS) e Ricardo Salles (PL-SP), apoiadores do ex-presidente e integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), uma das mais poderosas da Câmara, convidaram Bolsonaro para o lançamento de uma campanha contra a invasão de terras. Adversário declarado do MST, o capitão participou do evento, realizado em espaço cedido pela própria FPA. A Frente, no entanto, teve o cuidado de realizar horas antes — sem a presença do ex-presidente — a reunião sobre os vetos do presidente Lula ao projeto aprovado pelo Congresso que restitui o chamado marco temporal. A FPA quer derrubar os vetos presidenciais, o que pode ocorrer na base do voto ou por uma solução negociada com o governo. A segunda opção é considerada o melhor caminho e requer diálogo com a gestão petista, algo que o coordenador dos ruralistas, o deputado Pedro Lupion (PP-PR), tem priorizado, mesmo tendo apoiado a campanha à reeleição de Bolsonaro.
A premissa do deputado é a seguinte: os temas de interesse do agronegócio têm de ser debatidos no mérito, sem que sejam contaminados pelas paixões e preferências políticas. A FPA tem uma extensa pauta de negociação, por exemplo, com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, considerado o nome natural do PT para concorrer à Presidência da República na improvável hipótese de Lula desistir da reeleição. A opção pela moderação e o diálogo é facilitada pela força dos ruralistas, que reúnem 303 dos 513 deputados e 41 dos 81 senadores. Em tese, com ou sem a ajuda de Bolsonaro (ou de Lula), eles têm força para prevalecer nas votações do Congresso. Até por isso, o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), já adiantou que tentará uma solução negociada com a FPA sobre os vetos ao marco temporal. Há o temor de que eventual ruído na relação com o grupo contamine a tramitação de propostas de interesse do Planalto.
Desde o início de seu terceiro mandato, a prioridade de Lula é aprovar projetos da área econômica. O presidente tem feito o que pode para evitar atritos com os conservadores. Sob ordens dele, articuladores políticos do governo disseram a parlamentares que os vetos ao projeto do marco temporal só foram realizados porque o Supremo decidiu que a regra é inconstitucional. Lula também desautorizou ministros e auxiliares a envolver o governo em debates sobre a descriminalização das drogas e o aborto, temas que estão sob julgamento do STF e enfrentam resistência da bancada evangélica, que conta com mais de 200 deputados. Outro destaque na lista dos conservadores, os evangélicos também têm demonstrado força. Para não comprar briga com o grupo, Lula ordenou à ministra da Saúde, Nísia Trindade, que dissociasse o governo de uma resolução do Conselho Nacional de Saúde, aprovada em julho, que defendia a legalização do aborto e da maconha no Brasil. O Judiciário também se rendeu à força do grupo.
Apesar de ser simpático à ampliação das hipóteses de aborto legal, o novo presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, assumiu com a cúpula do Congresso o compromisso de não retomar o julgamento desse assunto durante o seu mandato à frente do tribunal. Assim como o Planalto, o STF sofre pressão dos conservadores. Ao pautar projetos que tentam alterar o funcionamento da Corte e limitar a ação de seus integrantes, o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, pode até conseguir aperfeiçoar o funcionamento do tribunal, mas, na prática, ele — mesmo que indiretamente — reforça a pressão para que julgamentos e direitos consolidados sejam revistos. É o caso do casamento de pessoas do mesmo sexo. Há mais de uma década, o Supremo chancelou a união homoafetiva, que agora é contestada pelos conservadores em um projeto de lei aprovado recentemente por uma comissão da Câmara.
Quando despachava no Planalto, Bolsonaro tinha como base parlamentar o Centrão, ao qual se aliou com base na troca de ministérios e verbas orçamentárias, e as bancadas BBBs — bala, boi e bíblia, uma expressão pejorativa criada pela esquerda para se referir a armamentistas, ruralistas e evangélicos. O capitão fez e faz questão de manter uma relação de parceria com esses segmentos — o problema é o tom exagerado. Seu filho Zero Três, o deputado Eduardo Bolsonaro, é o porta-voz do radicalismo desvairado na família. Na semana passada, ele defendeu a liberação de armas para os argentinos numa entrevista no país vizinho. Foi cortado do ar. No clã Bolsonaro, há convicção de que o ex-presidente deu poder a setores que antes ou não se posicionavam ou se posicionavam de forma tímida. A alegação é de que ele impulsionou os conservadores. Não importa se a tese é correta. O fato é que os conservadores ganharam musculatura. A força do grupo decorre de uma combinação de fatores. É um erro, porém, considerar que o conservadorismo está restrito à direita.
Uma pesquisa feita pelo instituto Quaest no início do ano mostra que os eleitores que votaram em Lula e Bolsonaro não estão abissalmente separados em temas como legalização do aborto e pensam muito parecido quando o assunto é legalização dos jogos ou pagamento de impostos. Os políticos perceberam que não é prudente ignorar esses indicativos. Nas últimas eleições, apesar da apertada vitória de Lula, o Congresso acabou dominado por políticos de centro-direita, que fizeram campanha em muitos casos defendendo valores como a família tradicional e o direito à vida. Essa pauta tem um forte apelo sobre o eleitorado. Desde Dilma Rousseff, os presidenciáveis petistas fogem dela quando estão em busca de votos. O conservadorismo também é catalisador de engajamento nas estratégicas redes sociais. Uma decisão econômica de Lula, por exemplo, não causa tanto rebuliço e reações no universo digital quanto o debate de temas como aborto e drogas.
O conservadorismo também encontra eco nas camadas mais pobres da população, especialmente entre evangélicos, um nicho em que o PT enfrenta forte resistência. É por isso que, no poder, Lula prefere não comprar brigas diretas com esse grupo político. É por isso também que o conservadorismo prescinde do bolsonarismo, tem prevalecido em debates importantes e se prepara para disputar a Presidência em 2026. Vários nomes são cotados para representar o grupo. Eles sonham desde já não com um novo Bolsonaro, mas com alguém que não carregue o radicalismo e, principalmente, a rejeição do capitão — espectros que dificultam negociações políticas e afastam os eleitores de centro.
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