Fugas e processos lentos dificultam prisões por estupro de vulneráveis

O estupro de vulnerável é um crime devastador que provoca graves transtornos, deixando marcas permanentes nas vítimas e suas famílias, muitas vezes acompanhadas de impunidade. No Brasil, são 5.472 mandados de prisão em aberto para esse tipo de crime, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No Rio Grande do Norte, são 41 mandados pendentes de cumprimento. Especialistas apontam a dificuldade de cumprir esses mandados devido a fugas e desaparecimentos de suspeitos e, em alguns casos, de condenados, o que facilita reincidências.
Em 2025, a Polícia Civil do Rio Grande do Norte prendeu pelo menos 41 pessoas suspeitas ou condenadas pelo crime de estupro de vulnerável. Esses números estão registrados no Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões (BNMP), do CNJ. Ao todo, o estado tem 5.735 mandados em aberto para diferentes crimes, como roubos, tráfico de drogas e homicídios. O estupro de vulnerável se refere não apenas a crianças e adolescentes, mas também a idosos e pessoas com deficiência que não podem oferecer resistência.
“Os dados mostram que, apesar das boas legislações de proteção à infância e adolescência, o Brasil ainda precisa avançar. Esses números evidenciam o quanto a prática é danosa para a vítima. Mesmo quando o agressor é responsabilizado, ele pode escapar da justiça por muitos anos, devido à morosidade do processo judicial, à falta de prisão preventiva e ao tempo para o agressor fugir ou mudar de identidade”, opina Gilliard Laurentino, psicólogo e consultor de proteção à infância. Laurentino, que atua no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio Grande do Norte (Cedeca/Casa Renascer), destaca que os processos de agressão sexual podem levar de três a quatro anos para responsabilização.
Neste mês de abril, por exemplo, a Polícia Civil do Rio Grande do Norte prendeu um ex-casal condenado por estupro de vulnerável em Monte das Gameleiras. O crime foi cometido em Tangará contra uma criança de 12 anos. No mês anterior, a Polícia Federal prendeu, em um clube de poker em Natal, um homem condenado a 55 anos de prisão em regime fechado. Ele estava foragido há 11 anos e foi sentenciado por estupro de vulnerável, produção, aquisição e venda de pornografia infantil, além de posse irregular de arma de fogo.
Em outro caso, um homem de 58 anos, com mandado de prisão preventiva expedido pela 1ª Vara Regional de Execuções Penais do TJRN, foi preso em Ribeirão Preto, São Paulo, por um crime cometido em 2014. No ano passado, em maio, um homem de 32 anos foi preso em Natal, condenado por dois crimes de estupro de vulnerável. O suspeito havia cometido os crimes contra duas crianças de seu entorno familiar e estava foragido desde 2020.
O delegado de Proteção a Grupos em Situação de Vulnerabilidade (DPGV), Ricardo Eduardo Neto, ressalta que o número de mandados de prisão relacionados ao estupro de vulnerável revela como a violência sexual contra crianças e adolescentes é um problema histórico e alarmante. Ele acrescenta que casos são registrados diariamente nas delegacias e que muitas pessoas já foram condenadas pelo Poder Judiciário. “O número de mandados de prisão reflete que a responsabilização criminal está ocorrendo, o que é fundamental para estimular novas denúncias e aumentar a confiança no sistema de justiça”, aponta.
De acordo com o delegado, investigados por crimes de estupro de vulnerável frequentemente fogem logo após serem denunciados, dificultando sua localização após a expedição dos mandados de prisão. O excesso de recursos e o longo tempo entre a denúncia e a expedição dos mandados de prisão também dificultam o cumprimento. “Processos relacionados a esse crime são complexos e demoram, com as condenações definitivas e os mandados geralmente saindo muitos anos depois, momento em que a polícia precisa recomeçar as investigações para localizar o foragido”, explica o titular da DPGV.
Justiça segue rigoroso processo antes de condenar
O juiz da 1ª Vara da Infância de Natal, José Dantas de Paiva, destaca que os crimes sexuais contra crianças e adolescentes costumam ser complexos, o que causa demora nas investigações e condenações. “Esses crimes, em geral, são complexos e o processo de apuração é demorado. Por exemplo, quando alguém viola um parente, é difícil para as pessoas acreditarem na vítima. Isso demanda provas, pois a condenação de um criminoso sexual só ocorre quando não há dúvidas sobre sua autoria e materialidade do crime”, afirma.
O juiz também menciona a criação, em 2020, de núcleos de Depoimentos Especiais em várias comarcas do Estado, conforme a Lei 13.431/2017, para garantir os direitos das vítimas de violência. “Disponibilizamos equipes técnicas de psicólogos, assistentes sociais e pedagogos para ouvir as vítimas, no que chamamos de Depoimento Especial evitando”, explica. Isso ajuda a evitar constrangimentos ou ou revitimização.
O promotor de justiça da Infância e Juventude de Natal, André Mauro Lacerda Azevedo, ressalta a complexidade de prender criminosos sexuais quando não há flagrante. Muitos dos suspeitos fogem, mudam de cidade ou até de estado, alterando suas identidades ilegalmente, o que dificulta a captura. “A efetivação de mandados de prisão esbarra em obstáculos significativos, como a evasão dos suspeitos. As motivações para a fuga incluem medo de retaliações familiares, represálias do crime organizado e, claro, a tentativa de escapar da justiça.”
Isso frequentemente resulta na suspensão dos processos judiciais e na decretação de prisões preventivas. “A falta de informações sobre o paradeiro dos acusados impede o cumprimento imediato dos mandados, gerando um número elevado de prisões pendentes”, aponta o promotor.
Entre 2020 e 2024, o Rio Grande do Norte registrou 3.943 casos de estupro de vulnerável, conforme dados da Coordenadoria de Informações Estatísticas e Análises Criminais da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Coine/Sesed). Desse total, 2.019 vítimas tinham entre 0 e 11 anos, enquanto 1.531 tinham entre 12 e 17 anos. Idosos e pessoas com deficiência também são vítimas desse crime. No mesmo período, a Polícia Civil tabulou 21 registros envolvendo vítimas acima de 60 anos, sendo 10 deles apenas em 2024.
Gilliard Medeiros, especialista em proteção à infância, alerta para a necessidade de os pais estarem atentos aos sinais de abuso em seus filhos. Ele enfatiza a importância de cuidados com o acesso às redes sociais e a tecnologia para prevenir crimes como o cyberbullying e o estupro virtual.
Muitos pais acreditam que seus filhos estão seguros em casa, mas eles podem estar em risco enquanto navegam em computadores, jogam online e interagem em redes sociais, como o Discord, mas é preciso estar alerta. “É essencial que os pais conheçam seus filhos, estejam próximos e observem com quem eles se relacionam, quais programas estão sendo acessados, e fiquem atentos a mudanças bruscas de comportamento. Um sinal de alerta é quando a criança ou adolescente se assusta e esconde o celular quando os pais entram no ambiente”, sugere o especialista.
Cadastro Nacional
Previsto em legislações sancionadas pelos ex-presidentes Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o Cadastro Nacional de Estupradores ainda não foi implementado e segue sem prazo para oficialização. O sistema, que está em fase de articulação com o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e o Conselho Nacional de Justiça, ainda não tem previsão de lançamento.
Em 2020, o Governo Federal criou o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro, que deve reunir informações sobre características físicas, identificação datiloscópica, perfil genético, fotos e dados sobre o local de moradia e a atividade laboral dos condenados, especialmente após a concessão de livramento condicional. Em 2024, entrou em vigor outra legislação, o Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais, que será desenvolvido a partir dos dados do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro.
Tribuna do Norte