Juiz de SC processa mais de 160 por uso de hashtag nas redes sociais
O juiz Rudson Marcos está processando mais de 160 pessoas por terem usado nas redes sociais a hashtag #estuproculposo ou citado a expressão em referência ao julgamento da influenciada digital Mariana Ferrer, influenciada por ele.
Segundo informações obtidas pela Folha , entre os processados estão os apresentadores Angélica, Ana Hickmann, Marcos Mion, Astrid Fontenelle, Ivete Sangalo; como as atrizes Camila Pitanga, Mika Lins, Tatá Werneck, Patrícia Pillar; o senador Jorge Kajuru (PSB-GO), a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), a deputada estadual Luciana Genro (PSOL-RS), o influenciador Felipe Neto, além de veículos de imprensa e plataformas como Google, UOL, O Estado de S. Paulo e Organizações Globo Participações.
A atriz e diretora Mika Lins, por exemplo, postou no Instagram apenas a hashtag #estuproculposonaoexiste, sem nenhuma menção direta ao caso Mari Ferrer ou ao juiz, e o magistrado entrou com pedido de indenização de R$ 15 mil por danos morais. Os processos correm em sigilo de Justiça.
Em 2018, a influenciadora digital catarinense Mariana Ferrer acusou o empresário André de Camargo Aranha de estupro em um clube de luxo em Florianópolis. Em 2020, Aranha foi absolvido pelo juiz Rudson Marcos, então na 3ª Vara Criminal de Florianópolis. Posteriormente, a sentença foi confirmada em segunda instância.
A expressão estupro culposo, que viralizou nas redes sociais, foi relacionada aos argumentos usados pelo promotor do caso, Thiago Carriço de Oliveira, de que não teria sorte dolo (intenção) do acusado, porque não teria como o empresário saber, durante o ato sexual , que o jovem não estaria em condições de consentir a relação . “Como não foi previsto a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico”, escreveu Carriço em sua argumentação, dando origem à viralização do termo estupro culposo.
Uma reportagem do Intercept Brasil divulgou imagens da audiência de instrução de 2020 em que Ferrer foi humilhado pelo advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, defensor do empresário Aranha.
O veículo usou a expressão “estupro culposo”, entre aspas, para se referir à tese da Promotoria, em reportagem assinada pelo repórter Schirlei Alves —o termo não foi utilizado no processo.
No mesmo dia, o site incluiu uma nota aos leitores em que esclarece que a expressão foi usada “para resumir o caso e explicá-lo para o leigo público”.
Antes da publicação do Intercept, Schirlei Alves havia mencionado outra reportagem tratando do processo, publicada no portal ND+. A expressão “estupro culposo” também constava neste texto.
O juiz Rudson e o promotor Carriço moveram ação contra um jornalista, alegando danos morais.
Em novembro do ano passado, a juíza Andrea Cristina Rodrigues Studer condenou Schirlei a seis meses de detenção em regime aberto, além de R$ 200 mil de peças individuais ao juiz Rudson e a mesma quantia ao promotor Carriço , num total de R$ 400 mil.
Andrea Cristina considerou, em sua decisão, que um repórter atribuiu ao juiz a utilização de uma tese inédita de “estupro culposo”, o que configuraria crime de difamação.
A defesa de Schirlei informou que já recorreu da sentença. Em nota, um jornalista afirmou que “o sentimento é de injustiça”.
Schirlei foi colaboradora da Folha em 2022 e 2023, produzindo reportagens.
Nos processos contra artistas, políticos e influenciadores, o juiz alega que o uso da expressão “estupro culposo” feriu danos a sua imagem, honra e carreira, e afirma ter sido vítima de ameaças de morte.
“É um absurdo ser processado por emitir uma opinião, trata-se de uma atitude autoritária”, diz a deputada Maria do Rosário, alvo de pedido de R$ 15 mil por danos morais.
A deputada postou, no antigo Twitter (atual X), com o link da matéria do Intercept: “A jovem foi estuprada e ainda humilhada. Ela é a vítima! Meu repúdio à humilhação da vítima e a essa sentença que libera estuprador! É ilegal, imoral e perversa! Caso Mariana Ferrer termina com ‘estupro culposo’ e humilhação da vítima”.
“Trata-se de uma ação orquestrada contra o direito legítimo das pessoas de se manifestarem contra o constrangimento a que Mari Ferrer foi aplicada”, disse a deputada estadual Luciana Genro, processada por R$ 30 mil. “Um juiz achar que tem o direito de criminalizar opinião é uma violação da liberdade de expressão.”
Para Charlene Nagae, diretora-executiva do Instituto Tornavoz, de defesa da liberdade de expressão, faz parte do processo democrático um magistrado ser alvo de críticas relacionadas à sua atuação. “Como magistrado, ele tem de saber apoiar críticas públicas; processar pessoas que simplesmente obtiveram uma hashtag é tentar cercear a liberdade de expressão, leva as pessoas a se sentirem intimidadas na hora de se expressar”, diz.
Na visão de Clarissa Gross, coordenadora da Plataforma de Liberdade de Expressão e Democracia da FGV Direito-SP, não se pode falar em violação no direito à honra, trata-se de um juiz envolvido em um caso de grande repercussão pública, que “está sujeito ao escrutínio público”.
A advogada Taís Gasparian, sociedade do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian – Advogados, questiona o fato de todos os processos correrem sob sigilo. “Não há nada que justifique o sigilo. A regra processual é pela publicidade, apenas em casos muito específicos o sigilo pode ser imposto”, diz.
Procurado, o juiz Rudson disse que os processos tramitam em segredo de justiça e por isso não é possível mencionar detalhes.
“Contudo, pode-se dizer que não é objetivo das ações limitadas à liberdade de expressão ou de imprensa. Apontam-se, entretanto, que as divulgações de notícias falsas devem ser objeto de responsabilização”, afirmou o magistrado, em mensagem enviada por meio de sua advogada.
Segundo ele, a motivação das ações é a associação da expressão estupro culposo a ele, como se ele tivesse planejado ou escrito essa expressão no processo, o que não ocorreu.
“(Isso) não foi um mero engano, pelo contrário, foi uma fake news alavancada propositalmente para que empresas e usuários de meios de comunicação sociais lucrassem com a repercussão equivocada da referida vinculação. Por este motivo torpe, foram sacrificadas a honra, imagem, carreira e moral deste magistrado.”
Em novembro do ano passado, o Conselho Nacional de Justiça impôs pena de advertência ao juiz Rudson por sua conduta na audiência que colheu o depoimento da influenciada. Segundo o CNJ, o magistrado foi omisso na condução da audiência de instrução.
No trecho da audiência divulgado pelo Intercept, o advogado Gastão definiu as poses das fotos de Mariana Ferrer como ginecológicas e não foi questionado sobre a relação delas com o caso. Também afirmou que “jamais teria uma filha do nível” de Ferrer. Ele ainda repreende o choro da jovem: “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”.
A influenciadora reclama do interrogatório para o juiz. “Excelentíssimo, eu estou implorando por respeito, nem os acusados, nem os assassinos são tratados do jeito que estou sendo tratados, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, diz.
O magistrado avisa Ferrer de que vai parar a gravação para que ela possa se recompor e tomar água e pede para o advogado manter um bom nível.
Folha SP