Maduro ameaça anexar parte da Guiana e cria problemas ao aliado Lula
Embora a humanidade tenha uma série de outras prioridades nas quais seria possível investir os maiores e os melhores esforços, o mundo gasta energia hoje com dois grandes conflitos armados — a invasão da Ucrânia pela Rússia e a guerra entre Israel e o grupo palestino Hamas —, que já ceifaram milhares de vidas e deixaram um gigantesco rastro de destruição. O Brasil se posiciona diante deles com algum anseio de protagonismo, que esbarra no pouco peso político do país na arena global e nos posicionamentos no mínimo duvidosos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em relação aos lados envolvidos. Agora, porém, o país está sendo chamado a mediar o que pode ser o início de novo entrevero armado, mas na sua fronteira, motivado pela pretensão tresloucada do regime chavista da Venezuela de anexar mais da metade da vizinha Guiana — a ex-colônia britânica, sentindo a ameaça iminente, já bateu às portas do governo brasileiro e de potências como Estados Unidos, Reino Unido e França em busca de ajuda. É sobre os ombros de Lula, no entanto, um dos poucos amigos de Nicolás Maduro — e talvez o melhor —, que repousa o fardo de resolver o imbróglio.
A reivindicação territorial da Venezuela não é nova, mas ganhou escala nos últimos dias em razão de dois fatores: a proximidade das eleições no país, em 2024, e o boom econômico do vizinho na esteira do avanço da exploração de petróleo. O alvo da cobiça é a região de Essequiba, uma área de 160 000 quilômetros quadrados formada em sua maioria por uma densa floresta cortada por rios caudalosos, que faz fronteira com Roraima e que representa dois terços do território da Guiana (veja o mapa). A posse da região foi concedida em 1899 à Guiana, na época uma colônia inglesa, por meio de arbitragem feita pelos Estados Unidos. A Venezuela questiona desde então a decisão e, em 1966, chegou a firmar um acordo com a Inglaterra, que reconhecia como nulo o Laudo Arbitral. Naquele mesmo ano, no entanto, a Guiana conquistou a independência, o que na prática manteve o acordo em suspenso até hoje.
Há dez anos no poder, Maduro viu na antiga reivindicação uma arma de campanha para encobrir a longa lista de problemas econômicos e sociais enfrentados pelo regime, instalado com a ascensão de Hugo Chávez em 1999. Maduro tem intensificado uma campanha interna para promover a sua intenção de anexar a área. Para se fortalecer politicamente, convocou para domingo 3 um referendo para que a população se posicione sobre o assunto. Uma das questões pergunta se o votante “está de acordo em rechaçar por todos os meios, conforme o direito, a linha imposta fraudulentamente pelo Laudo Arbitral”. O governo também tem promovido eventos públicos e uma ofensiva nas redes sociais para insuflar o patriotismo venezuelano — a disputa territorial desperta a simpatia até mesmo de parte do eleitorado e da classe política que não são simpáticos ao chavismo.
O pequeno vizinho já percebeu o tamanho da ameaça. O presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, que nasceu na região de Essequiba, recorreu até à Corte Internacional de Justiça em busca de ajuda. Nas últimas semanas, anunciou ter assumido “compromissos com sócios estratégicos” para enfrentar eventual “agressão militar”. A ameaça é mesmo séria. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, enviou recentemente à Guiana chefes do Comando Sul das Forças Armadas americanas para planejar a defesa do país. No último dia 9, Ali ligou para Lula para pedir ajuda. Autoridades militares da Guiana Francesa, um departamento ultramarino da França — e, portanto, sob a jurisdição do governo do presidente Emmanuel Macron —, também se reuniram com seus colegas da Guiana para, segundo a imprensa local, externar o “compromisso inabalável com a paz e a segurança na Guiana e em toda a região”.
A escalada militar venezuelana é, inclusive, propagandeada. Soldados do país divulgaram vídeos na internet mostrando a mobilização de tropas na fronteira, próximo a Roraima. Em discursos, Maduro tem exaltado a força militar do país e o que considera soberania sobre Essequiba. A diferença entre as capacidades bélicas dos dois países é gritante. Enquanto a Venezuela dispõe de um exército de 109 000 homens, sem contar as milícias armadas e a Guarda Nacional, a Guiana tem 4 000 soldados na ativa. “Num conflito armado, a Guiana vai precisar contar com a boa vontade dos amigos”, avalia o pesquisador Leonardo Paz, do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV.
Diante da saia justa de lidar com o amigo encrenqueiro de Lula para evitar uma guerra em nosso quintal, o governo brasileiro enviou na semana passada a Caracas o ex-chanceler Celso Amorim, que se reuniu com Maduro. No mesmo dia, o Itamaraty sediou uma reunião de ministros das relações exteriores e de defesa dos países sul-americanos, na qual Guiana e Venezuela expuseram seus argumentos. A explanação venezuelana chamou atenção pelo tom de ameaça. O chanceler brasileiro Mauro Vieira externou a posição nacional. “O Brasil estimula que as controvérsias sejam todas definidas por negociações, entendimentos e por arbitragem e por recursos a tribunais internacionais, como a Corte de Haia, sempre que possível”, disse. Uma missão difícil, diga-se, tendo em vista a pouca simpatia do regime chavista pelos organismos diplomáticos multilaterais globais.
O interesse de Maduro se ampliou nos últimos anos por um grande naco do território da Guiana com as descobertas de petróleo no litoral da região, cujo potencial ultrapassa 11 bilhões de barris. A revelação incentivou, inclusive, o governo brasileiro a intensificar, neste ano, os estudos técnicos para uma eventual exploração de petróleo na região da foz do Rio Amazonas. Em 2018, a Venezuela interceptou um navio petroleiro da Exxon nas águas de Essequiba, num ato considerado como “hostil e ilegal” pelo governo da Guiana. O petróleo fez com que a economia do país, que tem 804 000 habitantes (11 800 são residentes brasileiros), quadruplicasse nos últimos cinco anos. No ano passado, o crescimento do PIB de 62% foi o maior do mundo, segundo o Fundo Monetário Internacional (veja o quadro). A previsão é de alta de 38% neste ano e de 45% em 2024. O pequeno país sul-americano caminha a passos largos para ultrapassar o Kuwait e se tornar o de maior PIB per capita do mundo.
oda essa pujança, e a semelhança do petróleo descoberto com o que é explorado na Venezuela, atraiu Maduro, que comanda uma economia sustentada na exploração do óleo, mas decadente, a ponto de haver crise humanitária em razão da má gestão, da falta de investimentos e de um embargo econômico imposto pelos EUA — só aliviado em outubro, quando o venezuelano sinalizou a realização de eleições em 2024. Para especialistas, o movimento de Maduro está mais voltado a atrair o público interno para a sua reeleição do que a promover um conflito armado que pode levá-lo a bater de frente com interesses de potências, o que levaria a novos embargos. “Se Maduro está pretendendo entrar em conflito, é um erro estratégico grosseiro, mas se ele está de olho na eleição, sai na frente da oposição ao exaltar o nacionalismo venezuelano”, avalia o professor Moisés Marques, do curso de pós-graduação em Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) “Essequiba são as Malvinas da Venezuela”, completou, lembrando as ilhas que a ditadura argentina tentou retomar das mãos da Inglaterra, numa guerra inglória no início dos anos 80, cuja derrota acabou acelerando o fim do regime.
Para o Brasil, que aspira a ser uma liderança regional, o avanço de Maduro sobre a Guiana é um grande abacaxi. As relações de Lula e da esquerda com o chefe venezuelano são exaustivamente exploradas pelos adversários, que destacam a pouca transparência e as violações aos direitos humanos cometidas pelo chavismo. Em maio, Lula recebeu Maduro em Brasília, numa sinalização de reaproximação após quatro anos de distanciamento sob a presidência de Jair Bolsonaro. Na ocasião, o petista chamou de “narrativas” as acusações de que a Venezuela não vive sob um regime democrático. No mês seguinte, afirmou que o conceito de democracia é “relativo”. É esse aliado da pesada que Lula terá de defender novamente. A posição brasileira deve ser a de inibir qualquer aventura belicista e defender que as divergências entre países sejam resolvidas nos organismos internacionais, sob a força da diplomacia e não das baionetas. Falta “apenas” combinar isso com Maduro. O perigo mora ao lado.
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