Milícia usa medo de lucrar até com venda de gelo nas praias do Rio
As milícias estão cada vez mais presentes no dia a dia do Rio de Janeiro . Enquanto ocupam mais territórios, os grupos criminosos também ampliam suas atuações. Hoje, faturam com o monopólio de serviços, como internet e gás de cozinha, com controle sobre prostituição e com a extorsão de todo tipo de comércio, incluindo a venda de gelo nas praias e de vassoura na zona oeste.
Nesta semana, milicianos mostraram sua força ao coordenar o maior ataque ao ônibus da história do Rio. Foram queimados 35 veículos , instaurando caos na cidade e um prejuízo estimado em, ao menos, R$ 38 milhões . A ação ocorreu após a morte de um dos líderes da Milícia do CL, o maior grupo do estado.
A reportagem percorreu em dois meses cerca de 60 bairros e comunidades que englobam 833 áreas específicas pela Polícia Civil como sendo de influência da milícia, nas quais conversaram com ocorrências de vítimas desses grupos criminosos. Este texto é o primeiro da série de reportagens Milícia no RJ .
Criadas a partir de uma união entre ex-policiais e políticos locais, as milícias começaram a ganhar força no Rio a partir do início dos anos 2000. Foi nesse período que surgiu a Liga da Justiça, maior grupo do tipo atualmente na capital fluminense.
Inicialmente, eles nasceram com discurso de levar mais segurança a áreas dominadas pelo tráfico de drogas. Na prática, porém, recorreram a extorsões e coações para obrigar moradores a pagarem taxas em troca de proteção e acesso aos seus serviços —como o oferecimento de gás e de transporte.
“A milícia age taxando um serviço já disponível” e criando um monopólio, diz o delegado André Neves, da Draco (Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas), responsável por investigar os grupos, que atuam principalmente na zona oeste e na Baixada Fluminense.
A partir dos anos 2010, esse perfil começa a mudar, com a entrada de ex-traficantes nas milícias. A antiga Liga da Justiça —hoje conhecida como Bonde do Zinho, ou Milícia do CL— é, inclusive, aliada do Terceiro Comando Puro, uma das principais facções criminosas do Rio.
Já na Gardênia Azul, também na zona oeste, milicianos dissidentes se uniram aos traficantes do Comando Vermelho e passaram a disputar o território com o grupo de Rio das Pedras.
Foi no meio dessa disputa entre as duas milícias que três médicos foram mortos em um quiosque na Barra da Tijuca, no início do mês —segundo a polícia, membros da Gardênia Azul confundiram um dos ortopedistas com um miliciano de Rio das Pedras.
Ao contrário das áreas controladas por traficantes, nas regiões de milícia não há homens com armamento pesado nos acessos, barricadas ou pichações com símbolos das quadrilhas. Com exceção de quem realiza a cobrança das taxas, ninguém sabe ao certo quem é miliciano e quem não é.
Esse medo difuso é o principal pilar que obriga um morador a pagar por um serviço. “Tem um rapaz que vem toda semana pegar o dinheiro, ele diz que é da segurança, sempre está de moto, com arma na cintura. A gente paga. O preço de procurar a polícia pode ser maior”, disse um morador da favela Divineia , na zona oeste. Assim como a maioria dos entrevistados, ele pediu para não ter seu nome divulgado por temer retaliações.
Segundo o promotor Fábio Corrêa, do Gaeco (Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado), a milícia “vende também uma ideia de pseudo agenda moral contra o tráfico e assaltantes”.
Exemplo disso é o caso de Adriel Bastos, 21. Em agosto do ano passado, ele e outros três amigos foram retirados de dentro do carro no qual estavam na Baixada Fluminense, torturados e mortos por milicianos —o crime aconteceu porque um deles era suspeito de ter participado de um roubo.
“Meu irmão era só hold, ele queria cuidar da filha. Eles tiraram isso”, diz Flávia Andrade, 28 anos, irmã de Adriel.
O território dominado por milicianos aumentou 387% entre 2006 e 2021, segundo estudo da UFF (Universidade Federal Fluminense) e do instituto Fogo Cruzado. A expansão foi acompanhada por ameaças aos comerciantes e ao monopólio dos serviços.
É o caso de um empresário que fornecia gelo para as praias da zona oeste. “Demorei anos para conseguir meu negócio. Me recusei a pagar taxas e eles ameaçaram os funcionários, jogaram todo o gelo no chão. Depois de um ano, vendi para eles por um preço bem abaixo do mercado. Não fiz o registro por medo. O gelo que vai para essas praias tem dedo de milícia”, diz ele, que também pediu para não ter o nome divulgado.
Um outro comerciante, da Baixada Fluminense, compareceu a Draco em junho para relatar a cobrança de impostos na venda do gelo. Ele inicialmente disse aos policiais que os milicianos o ameaçaram: se não pagasse R$ 300 semanalmente, perderia seu negócio. Depois, porém, desistiu de registrar um boletim de ocorrência do caso. Procurado pela reportagem, não quis falar .
Há outros relatos semelhantes. Um vendedor de vassoura que conversou com a reportagem disse pagar R$ 10 por semana para circular com a mercadoria debaixo do sol, de segunda a sábado, na zona oeste. O dono de uma barraca de doces diz ser taxado com o mesmo valor.
As anotações apreendidas pela polícia confirmam esse tipo de cobrança. Já há inquéritos abertos para investigar taxas cobradas inclusive de prostitutas.
“Se não pagar, ficamos sem proteção. Podem nos bater. Damos R$ 30 a R$ 50, por semana”, contou a travesti Cátia (ela pediu para não ter o sobrenome divulgado), que trabalha em Bangu, na zona oeste do Rio. Como pagamento, receba amparo em caso de agressões ou roubos de clientes.
Prostitutas do Recreio (também na zona oeste) afirmaram à reportagem que trabalham longe do Terreirão, área de milicianos, para não pagar taxas. Ficam mais vulneráveis, perto de uma reserva ambiental.
Uma flanelinha de Grumari, na mesma área, disse que paga R$ 100 ao que chama de “arrecadador”. Ele mostrou à reportagem conversas em um aplicativo com um suspeito das cobranças.
Para especialistas, a diferença entre milicianos e traficantes é que os primeiros têm dentro das polícias e do Judiciário. Na gestão Castro, os grupos foram cunhados de narcomilicianos, sem distinção, já que ambos traficaram e extorquem.
De 2007 a 2021 foram 10.098 ações policiais contra traficantes do Comando Vermelho no Rio, enquanto 1.909 foram contra milícias. Os dados foram tabulados pelo Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos, da UFF. “Fica evidente a tolerância das polícias com os milicianos”, disse Daniel Hirata, coordenador do grupo.
Procurado, o governador Cláudio Castro (PL) disse que caberia às polícias do estado se manifestarem sobre o tema. A gestão moderna do termo narccomilícia para se referir a grupos criminosos, sem diferenciar traficantes e milicianos.
O sociólogo José Cláudio Souza, da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), considera que há uma intenção por trás do termo. “Chamam todos de narccomilícia. Assim, opera-se mais contra o tráfico e a milícia fica estabilizada. Para a opinião pública, vão falar que estão combatendo a milícia, que ela está enfraquecida”.
Questionada sobre o assunto, a Polícia Militar afirmou que “a corporação atua com base em denúncias e dados de inteligência para combater indistintamente práticas criminosas, feitas pelo tráfico ou pela milícia”.
Disse também que “o combate aos grupos é uma das principais metas do comando atual”, e que criou uma delegacia interna para combater a presença de milicianos dentro da corporação.
Um oficial da PM que planeja operações afirmou que as ações nas áreas de tráfico ocorrem com mais frequência pois são quadrilhas que atuam em roubos, o que acarretaria maior impacto na sensação de segurança.
Já a Polícia Civil afirmou que criou em 2021 uma força-tarefa para o combate aos milicianos, que hoje foi remodelada e está equipada com Draco. Disse ainda que a prisão de líderes tem enfraquecido a atuação desses grupos.
O promotor Paulo Roberto Mello, que apura crimes de policiais e bombeiros, disse que a milícia só existe por suporte policial. “Esse envolvimento pode ser desde a coleta de propinas para não reprimir a atividade criminosa até o direto na organização”.
Folha de SP