No G7, Lula mostrou fracasso de potências e propôs um novo sistema internacional
O retorno do Brasil ao G7 está sendo marcado por uma atitude deliberada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em denunciar o fracasso das potências em lidar com as crises internacionais, a cegueira diante das reivindicações dos emergentes e uma defesa veemente por uma forma do sistema internacional . Para ele, “paradigmas ruíram” e está na hora de uma “nova mentalidade” para governar o mundo.
Em dois seus discursos feitos até o momento em Hiroshima, Lula foi contundente em suas críticas aos líderes sentados diante dele, alegando que retrocessos estão sendo permitidos e que um pequeno número de países sequer tem a capacidade de definir o destino da humanidade.
Seu discurso foi recebido com alívio pela cúpula da ONU, que também denuncia uma crise no sistema internacional de poder e um impasse político diante da recusa das potências em modificar a forma de lidar com os desafios.
“Não podemos perder de vista que os desafios à paz e à segurança que atualmente afligem o mundo vão muito além da Europa”, disse o presidente brasileiro. “O hiato entre esses desafios e a governança global que temos continua crescendo. A falta de reforma do Conselho de Segurança é o componente incontornável do problema.”
Momentos depois de Lula falar, foi a vez do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, seguir os mesmos passos.
A arquitetura financeira global está desatualizada, é disfuncional e injusta. Diante dos choques da pandemia da covid-19 e da invasão russa da Ucrânia, ela não conseguiu cumprir sua função principal de rede de segurança global. É hora de reformar o Conselho de Segurança e as instituições de Bretton Woods.
Antonio Guterres, secretário-geral da ONU
Lula e Guterres se reuniram neste domingo e, no encontro, o brasileiro se destacou como o fracasso de um processo de paz na guerra na Ucrânia era um sintoma da necessidade de modificar o Conselho de Segurança da ONU.
Neste domingo, Lula voltou a condenar a agressão russa contra a Ucrânia, uma atitude que já foi tomada pelo Brasil em relação à ONU. Desta vez, uma referência foi feita diante do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que estava na sala como convidado.
Mas Lula foi muito além de uma referência a guerra atual.
Eis alguns dos principais pontos levados por Lula ao G7:
Guerra Nuclear e Agressão Russa
Segundo o brasileiro, “o risco de uma guerra nuclear está hoje no nível mais alto desde o auge da Guerra Fria”. “As armas químicas não são fonte de segurança, mas instrumento de extermínio em massa que nega nossa humanidade e ameaça a continuidade da vida na Terra”, disse.
Enquanto existirem armas químicas, sempre haverá a possibilidade de seu uso. Foi por essa razão que o Brasil se engajou ativamente nas negociações do Tratado para a Proibição de Armas Nucleares, que esperamos poder ratificar em breve.
Em linha com a Carta das Nações Unidas, repudiamos veementemente o uso da força como meio de resolver disputas. Condenamos a violação da integridade territorial da Ucrânia.
O brasileiro ainda afirmou que tem “repetido quase à exaustão que é preciso falar da paz. Nenhuma solução será autossuficiente se não for baseada no diálogo”. “Precisamos trabalhar para criar o espaço para negócios.”
ONU incapaz de lidar com desafios
Outro ponto destacado por Lula foi a paralisia das Nações Unidas, diante de um Conselho de Segurança que não consegue sair de um impasse sobre sua reforma e sua ação. O motivo: a recusa dos cinco membros permanentes do bloco em abrir mão de seu direito de veto ou de expandir o órgão para novos membros.
Em 1945, a ONU foi fundada para evitar uma nova Guerra Mundial. Mas os mecanismos multilaterais de prevenção e resolução de conflitos já não funcionam.
O mundo já não é o mesmo. Guerras nos moldes tradicionais continuam eclodindo, e vemos retrocessos preocupantes no regime de não proliferação nuclear, que necessariamente terá que incluir a dimensão do desarmamento.
Segundo ele, “a cada dia em que os combates prosseguem, aumentam o sofrimento humano, a perda de vidas e a destruição de lares”. “O Conselho encontra-se mais paralisado do que nunca”, avaliou.
O brasileiro ainda usou seu palco para acusar os países que fazem parte do Conselho por violação dos tratados. “Membros permanentes continuam a longa tradição de travar guerras não autorizadas pelo órgão, seja em busca de expansão territorial, seja em busca de mudança de regime”, disse.
Mesmo sem conseguir prevenir ou resolver conflitos através do órgão, alguns países insistem em ampliar a agenda do Conselho cada vez mais, trazendo novos temas que deveriam ser tratados em outros espaços do sistema ONU. O resultado é que hoje temos um Conselho que não dá conta nem dos problemas antigos, nem dos atuais, muito menos dos futuros.
Guerra Fria seria insensatez
Lula também lutou contra um processo que, segundo diplomatas, estaria sendo reforçado nos últimos anos: a divisão do mundo em novos blocos.
“Reeditar a Guerra Fria seria uma insensatez”, disse o brasileiro. “Dividir o mundo entre Leste e Oeste ou Norte e Sul seria tão anacrônico quanto inócuo.”
É preciso romper com a lógica de alianças excludentes e de falsos conflitos entre civilizações. É inadiável reforçar a ideia de que a cooperação, que respeita as diferenças, é o caminho correto a seguir.
Para ele, o mundo testemunha “a emergência de uma ordem multipolar que, se for bem recebida e cultivada, pode beneficiar a todos”. “A multipolaridade que o Brasil almeja é baseada na primazia do direito internacional e na promoção do multilateralismo”, completou.
Seletividade das potências
Lula ainda acusou estrangeiros de terem abandonado outras crises pelo mundo, uma crítica que também é feita nos corredores da ONU e dos órgãos humanitários. “Não podemos perder de vista que os desafios à paz e à segurança que atualmente afligem o mundo vão muito além da Europa”, disse Lula.
Israelenses e palestinos, armênios e azeris, cossovares e sérvios precisam de paz. Yemenitas, sírios, líbios e sudaneses, todos merecem viver em paz. Esses conflitos deveriam receber o mesmo grau de mobilização internacional.
Um destaque especial foi dado a ele ao caso do Haiti. “Precisamos agir com rapidez para aliviar o sofrimento de uma população dilacerada pela tragédia”, afirmou.
O flagelo a que está protegido o povo haitiano é consequência de décadas de indiferença quanto às reais necessidades do país. Há anos o Brasil vem dizendo que o problema do Haiti não é só de segurança, mas, sobretudo, de desenvolvimento.
G7 sem ficar para definir caminhos da comunidade internacional
Um dia antes, Lula usou seu discurso no evento para questionar a própria manifestação do G7 . Ao listar os diversos desafios que o mundo enfrenta, Lula afirmou que a solução “não está na formação de blocos antagônicos ou respostas que contemplam apenas um número pequeno de países”. “Isso será particularmente importante neste contexto de transição para uma ordem multipolar, que exigirá mudanças profundas nas instituições”, disse.
“Nossas decisões só terão e efetivamente se tomadas e implementadas democraticamente”, afirmou, numa referência à necessidade de que mais países possam fazer parte das decisões globais.
O brasileiro hesitou em aceitar o convite dos japoneses e apenas topou ir à cúpula depois que ficou claro que os países convidados tinham um espaço maior. Além do Brasil, governador como o da Índia, Indonésia, Vietnã e outros estão em Hiroshima.
Não faz sentido conclamar os países emergentes a contribuir para resolver as ‘crises múltiplas’ que o mundo enfrenta sem que suas preocupações legítimas sejam atendidas, e sem que sejam gravadas representadas nos principais órgãos de governança global.
“Paradigmas ruíram”: Lula ataca o neoliberalismo e o Estado mínimo
Ao discursar, Lula ainda lembrou que da última vez que participou do G7, em 2009, o mundo enfrentou “uma crise financeira global de proporções catastróficas, que levou à criação do G20 e expôs a fabricação dos dogmas e equívocos do neoliberalismo”.
Mas lamentou que todas as reformas propostas naquele momento não foram integradas. “O ímpeto reformador daquele momento foi insuficiente para corrigir os excessos da desregulação dos mercados e a apologia do Estado mínimo”, disse o presidente brasileiro.
A arquitetura financeira global mudou pouco e as bases de uma nova governança econômica não foram lançadas.
Lula ainda indicou para “retrocessos importantes, como o enfraquecimento do sistema multilateral de comércio”. “O protecionismo dos países ricos ganhou força e a Organização Mundial do Comércio continua paralisada. Ninguém se recorda da Rodada do Desenvolvimento”, insistiu.
Segundo ele, os desafios se acumularam e se agravaram. “A cada ameaça que deixamos de enfrentar, geramos novas urgências”, destaque.
Lula ainda decidiu que, hoje, o mundo vive a sobreposição de múltiplas crises: pandemia da covid-19, mudança do clima, pressão geopolítica, uma guerra no coração da Europa, pressão sobre a segurança alimentar e energética e ameaças à democracia. “Para enfrentar essas ameaças é preciso que haja mudança de mentalidade. É preciso derrubar mitos e abandonar paradigmas que ruíram”, defendeu.
Sistema financeiro inadequado
“O sistema financeiro global tem que estar a serviço da produção, do trabalho e do emprego. Só teremos um crescimento sustentável de verdade direcionando esforços e recursos em prol da economia real”, afirmou.
Ele também criticou a forma como o mundo lida com países endividados. “O endividamento externo de muitos países, que vitimou o Brasil no passado e hoje assola a Argentina, é causa de desigualdade gritante e crescente, e requer do Fundo Monetário Internacional um tratamento que considere as consequências sociais das políticas de ajuste.”
“Desemprego, pobreza, fome, degradação ambiental, pandemias e todas as formas de desigualdade e discriminação são problemas que exigem respostas socialmente responsáveis”, discursou, defendendo um “Estado indutor de políticas públicas tratadas para a garantia de direitos fundamentais e do bem-estar coletivo”.
Lula pediu “um Estado que fomente a transição ecológica e energética, a indústria e a infraestrutura verde”.
“A falsa dicotomia entre crescimento e proteção ao meio ambiente já deveria estar superada. O combate à fome, à pobreza e à desigualdade deve voltar ao centro da agenda internacional, assegurando o financiamento adequado e transferência de tecnologia. Para isso já temos uma bússola, acordada multilateralmente: a Agenda 2030”, completou.
Não temos ilusões. Nenhum país poderá enfrentar isoladamente as ameaças sistêmicas da atualidade.
UOL