O perigoso avanço das drogas K, conhecidas como maconha sintética

Na terminologia grega, a palavra fármaco pode significar tanto remédio quanto veneno. Foi nos Estados Unidos dos anos 1960, depois na Europa, que um desses medicamentos, com esse duplo potencial, foi desenvolvido em laboratório, à base de canabinoides sintéticos de conhecida função terapêutica. A ideia era que as substâncias recriadas artificialmente para agir no cérebro de forma similar ao THC, o princípio ativo da maconha, fossem empregadas em pacientes com dores crônicas, distúrbios de ansiedade e sono, entre outros. Ao longo do tempo, porém, seu uso se desvirtuou do propósito original, desaguando num mercado paralelo sem nenhum controle. Agora, a explosão da droga, ora conhecida como maconha sintética (mesmo não tendo nada a ver com a planta da Cannabis e às vezes nem mais conter o THC de laboratório), ora como K2, K4, K9 ou spice, entrou no radar das autoridades no Brasil. O motivo: pela primeira vez ela se espalha perigosamente pelo país, por todas as classes sociais.

Produzido com fórmulas que se valem de até 300 diferentes componentes e 100 vezes mais potente que a maconha, o entorpecente da vez pode viciar em questão de dias, levando a efeitos devastadores e imprevisíveis — daí o recente alerta emitido pelo Ministério da Justiça para tentar frear seu crescimento. Só em São Paulo, as apreensões das drogas K subiram dez vezes neste ano. Secretarias de Segurança de uma dezena de outros estados, como Rio de Janeiro, Paraná e Acre, também registraram o comércio dessas deletérias substâncias, que, num lance de marketing, se vendem como um tipo de maconha, quando não são. Embora tenha encontrado terreno fértil nas cracolândias, a droga vem sendo consumida em abundância em eventos de concentração de jovens, como festas embaladas a música eletrônica. Um recente estudo feito pela Unicamp em raves de três capitais achou vestígios do temido K em quatro de cada dez pessoas.

Um empurrão a seu ascendente mercado certamente é o preço, entre 5 a 30 reais. Processada no estado líquido, a droga pode ser fumada numa mescla com tabaco ou mesmo Cannabis, ingerida em papelotes borrifados, inalada em pipetas ou adicionada a chás. Há casos até de uso em cigarros eletrônicos. Não importa o caminho pelo qual tome contato com o organismo, é como um tsunami, capaz de abalar a saúde de múltiplas maneiras. “Atuo há quatro décadas na área e tenho presenciado o inferno provocado por essa droga, que muitas vezes leva à UTI”, afirma Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do centro de tratamento de dependentes químicos da Unifesp.

Conforme a dose e frequência, o usuário apresenta reações que vão de agressividade, alucinações auditivas e visuais, convulsões e taquicardia a tendências suicidas, complicações neurológicas e infarto agudo. Não raro, os consumidores mergulham em um estágio de letargia, o “efeito zumbi”, que pode se estender por horas a fio. “É extremamente perigosa, a pessoa se descola completamente da realidade e perde o domínio físico e mental”, diz o psiquiatra Jorge Jaber, dono de uma tradicional clínica com seu nome, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, que desde o ano passado vem recebendo vítimas das nocivas substâncias sintéticas.

As consequências para quem está sob seu efeito, ou na fase de abstinência, são tão severas que é comum ver usuários chegando às clínicas de ambulância. Depois de ter experimentado a droga na Europa, onde morou por quase dez anos, um especialista em TI, de 33, caiu na armadilha de voltar a consumi-la no Brasil, no ano passado. Desenrolou-se a partir daí um pesadelo, que pôs sua vida em suspenso. “Primeiro, você tem uma sensação maravilhosa, como se os problemas desaparecessem, mas depois aquilo acaba com a sua vida. É pior do que o crack”, relata ele, que foi internado. O calvário incluiu o drama da abstinência — febre, convulsão e diarreia, tudo ao mesmo tempo. Centros de atendimento a dependentes químicos, especialmente em São Paulo, onde a droga mais se disseminou, registram casos de moradores de bairros nobres que, arrastados pelos sombrios desdobramentos da maconha sintética, foram parar nas cracolândias.

Diversas histórias ouvidas por VEJA ajudam a dimensionar o elevado poder de danos envolvido na experiência. Não faz muito tempo, uma técnica de enfermagem de 46 anos, desesperada, decidiu ver como era, com o objetivo de ajudar a filha, uma jovem de 21 que se tornara dependente daquelas substâncias. Em três dias, a mãe se viciou, e as duas seguem agora em tratamento. Como muitos que se deixam aproximar da droga, ela subestimou seu potencial destrutivo, impossível de controlar. “Além do vício, existe o perigo de um quadro de psicose, com completa perda da noção de realidade, em certos casos irreversível”, enfatiza o psiquiatra Fábio Pinheiro, à frente da Clínica Huxley, no interior paulista, que neste ano internou quinze adeptos da droga K. No pior cenário, ela leva à morte — só em 2023 houve o registro de dez óbitos na cidade de São Paulo, o que os especialistas sabem ser subnotificado.

Um dos grandes desafios no combate ao entorpecente é que sua produção não obedece a um padrão. Os traficantes se utilizam de centenas de matérias-primas que desembarcam no país vindas de todo o canto — Ásia, Europa, África, Paraguai e México — e são processadas em laboratórios de fundo de quintal. Uma investigação do Ministério Público paulista revelou que vários componentes são também comprados na dark web, o obscuro subterrâneo das redes, em sua maioria provenientes de indústrias como a de derivados de petróleo e de itens têxteis. “Além de ser uma droga de difícil apreensão por se apresentar em variados formatos, alguns inodoros, ela está pulverizada nas mãos de um mercado de microtraficantes”, afirma o promotor Tiago Dutra Fonseca.

Nos Estados Unidos, os canabinoides sintéticos já tomaram contornos de uma epidemia, drama que motivou autoridades a instalar máquinas, parecidas com as de refrigerantes, com remédios para overdose. O primeiro registro de sua ocorrência no Brasil data de 2017 — uma atividade encabeçada, segundo o MP, pelo Primeiro Comando da Capital, o PCC, maior facção criminosa do país. De acordo com o inquérito, durante a pandemia, o grupo testou o entorpecente em presídios, que ali entrava escondido em livros e cadernos. Diante da alta incidência da droga nas carceragens, o Ministério da Justiça e secretarias de estado vetaram inclusive a entrada em suas unidades de papel sulfite, usado como base para a substância borrifada. Como se vê, não faltam evidências de que a batalha contra esse mal — que, como tantas drogas, traz consigo uma ilusão de alegria, deixando um rastro de destruição —se faz mais urgente do que nunca.


VEJA

Postado em 18 de dezembro de 2023