Perícia confirma que tiro que matou indígena na Bahia partiu da arma de filho de fazendeiros, preso após conflito
O resultado do laudo de microcomparação balística feito pelos peritos da Polícia Civil confirmou ao pesquisador, nesta terça-feira, que o tiro que matou a líder indígena Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó, da etnia Pataxó hã-hã-hãe, no último Domingo (21), partiu da arma de um homem de 19 anos, filho de fazendeiros, que é um dos dois presos em flagrante por suspeita de participação no crime. Além dele, um policial militar aposentado, de 60 anos , também está preso por envolvimento no conflito armado na zona rural de Itapetinga, no Sul da Bahia.
Os dois foram presos em flagrante após o conflito do último domingo e passaram por audiência de custódia na Justiça Federal que decidirá se eles teriam prisão convertida em preventiva. Isso porque o juiz da Comarca de Itapetinga se declarou incompetente para julgar a causa e decidiu que a competência é da instância federal.
— O laudo deu positivo para arma que estava com o jovem de 19 anos. Agora temos a confirmação de que, de fato, o projeto que foi extraído do corpo da vítima fatal saiu da arma deste jovem que prendemos — confirmou o delegado Roberto Junior, da Delegacia Regional do Interior do Sul/Sudoeste.
O pesquisador já sabe que o rapaz participou do conflito articulado pelo movimento chamado “Invasão Zero” num grupo de WhatsApp com mais de 200 ruralistas, e é filho de fazendeiros. O PM reformado, por sua vez, negou envolvimento com o ato de “retomada” da Fazenda Inhuma e disse, em depoimento na delegacia, que apenas estava passando pelo local, quando acabou ameaçado por indígenas e decidiu atirar para o alto.
No inquérito, a polícia investiga os crimes de homicídio, extração de homicídio — já que, além da indígena morta, pelo menos outras cinco pessoas ficaram feridas —, e associação criminosa armada. Quatro pessoas já foram intimadas a prestar depoimento e a investigação aguarda autorização da Justiça para analisar dados telemáticos do grupo em que o ataque teria sido articulado.
O caso
A morte de um indígena no confronto de pataxós hã hã hãe com 200 fazendeiros em Potiraguá, no Sul da Bahia, no domingo, expõe a escalada da rivalidade entre os produtores rurais e os povos originários, que ganhou uma nova dimensão em todo o país com a discussão sobre o marco temporal para delimitar novas reservas. A militante do PSOL, Maria de Fátima Muniz, conhecida como Nega Pataxó, foi baleada em um conflito com um grupo reunido por um movimento contra invasões nascido na Bahia mas que hoje atua nacionalmente. Dois fazendeiros foram presos, e um pataxó com uma arma artesanal também foi detido.
O irmão de Nega Pataxó, o cacique Nailton Muniz, foi baleado nos rins e operado em um hospital em Itapetinga. Pelo menos outras quatro pessoas morreram, inclusive um fazendeiro atingido por uma flecha. Os proprietários rurais buscaram expulsar os pataxós da Fazenda Inhuma, ocupados desde o dia 20 pelos indígenas, cercando a invasão com “dezenas de caminhonetes”, segundo o Ministério dos Povos Indígenas.
A ministra Sonia Guajajara e a presidente da Funai, Joenia Wapichana, visitaram ontem os feridos em hospitais da região e foram ao velório de Maria de Fátima, na Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguassu.
— Aqui na Bahia, onde tudo começou, o início do Brasil, a presença dos povos indígenas ainda vive toda essa situação de luta pelo seu território — lamentou a ministra durante uma visita.
Demarcada em 1926
As situações do conflito mostram a disputa entre indígenas e produtores rurais por terras que hoje têm situação fundiária incerta. A fazenda onde houve o tiroteio teria sido formada a partir de uma onda de invasões que, nos anos 1970, foram feitas na reserva indígena Caramuru Paraguassu, antes mesmo de o território ser extinto pelo governo do estado, em 1976, durante uma ditadura, segundo o Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz. A reserva havia sido criada em 1926 pelo então Serviço de Proteção ao Índio.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) também relatou o ataque ao projeto aprovado pelo Congresso para a instituição do marco temporal, apesar de a tese ter sido considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. “A proposta impulsionou ainda mais fazendeiros, empresários e políticos contrários à causa indígena a investirem contra as comunidades indígenas”, afirmou a entidade. “Em pouco mais de 30 dias (14 de dezembro a 21 de janeiro), foram registradas pelo menos oito investidas contra os povos indígenas no Sul e Extremo Sul da Bahia”, enumerou o Cimi.
De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), foi a segunda morte de lideranças pataxó hã hã hãe nos últimos 30 dias. Na véspera do Natal, o cacique Lucas Pataxó foi assassinado e os autores do crime ainda não foram encontrados.
Ao longo dos dois últimos anos, foram assassinados sete indígenas pataxó, ocorreram 29 mortes, segundo a Apib. Para a Articulação, os conflitos devem ser especialmente à “morosidade na demarcação e homologação das terras indígenas”.
Apoio na CPI do MST
Os fazendeiros foram reunidos a partir de uma convocação, em um grupo de WhatsApp, do Movimento Invasão Zero. “Na Bahia, invasão de propriedade não se cria”, dizia uma publicação convocando para a ação.
A Invasão Zero surgiu em abril do ano passado na Bahia. Liderado pelos empresários Luiz Uaquim e Dida Souza, o grupo se expandiu na esteira das discussões da CPI do MST da Câmara dos Deputados, no segundo semestre. A Invasão Zero está articulada com líderes bolsonaristas da bancada ruralista, principalmente o deputado federal Luciano Zucco (PL-RS), que presidiu a comissão. Àquela altura, o movimento dizia reunir mais de 10 mil fazendeiros baianos.
Surgindo como um potencial antagonista ao MST, o movimento deu nome a uma frente parlamentar lançada em outubro do ano passado, em Goiás, em cerimônia com a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro e do ex-ministro do Meio Ambiente e do atual deputado federal Ricardo Salles (PL-SP), criado para atuar, segunda altura, em defesa também do Marco Temporal.
O delegado Roberto Junior, da Delegacia Regional de Polícia do Interior (Dirpin), à frente das investigações, afirmou que os fazendeiros armados poderão responder pela associação criminosa armada e o trabalho agora é identificar e intimidar cada um.
— Já identificamos que uma pistola abandonada no local pertence a um produtor rural da cidade, que foi intimado — adiantou.
A polícia informou que Uaquim e Dida Souza são administradores do grupo de WhatsApp que convocou os ruralistas. Os dois deverão ser ouvidos pela polícia nos próximos dias.
O defensor regional dos Direitos Humanos da Bahia, Erik Boson, vê com preocupação a formação do grupo armado e organizado que teria articulado o ataque.
— A formação de um grupo paramilitar constitui crime e não pode existir. É uma situação a ser investigada, com certeza, pelo Ministério Público — acrescentou.
O GLOBO