Por que a falta de cuidado com o fígado virou um problema de saúde pública
Desintoxicar o corpo, processar remédios, fabricar proteínas e essenciais, assegurar a coagulação do sangue, ajudar na digestão. Essas são algumas das centenas de funções de uma estrutura com cerca de 14 centímetros e 1,5 quilometro localizadas à direita do abdômen. Diante delas, fica evidente a voz do fígado, nobilíssimo membro do seleto grupo de órgãos de resistência. É paradoxal, portanto, diagnosticar que a maioria dos profissionais de saúde e da população não olha para essa peça-chave do organismo com a merecida atenção. É um problema de saúde pública que, na falta de cuidados adequados, pode abrir caminho silencioso e perigoso para homens como cirrose e câncer.
A negligência com os domínios hepáticos, fruto de desconhecimento generalizado (que inclui lacunas na formação médica), é um dos capítulos de maior atenção da medicina hoje. A maior preocupação diz respeito ao nome de esteatose hepática, o acúmulo de gordura acima do desejável no fígado. Atenção: não se trata de mero consumo de uma iguaria como o foie gras. A condição, assintomática por anos a fio, pode evoluir para quadros gravíssimos, só resolvidos com um transplante — no mundo ocidental, a doença hepática gordurosa, como também é conhecida, está se tornando a principal causa de morte hepática. Estima-se que pelo menos três em cada quatro brasileiros apresentam o problema, índice que salta para 80% da população com diabetes ou obesidade. Fora a gordura, outras ameaças ao fígado são o consumo abusivo de álcool,
Mas será que os médicos estão realmente atentos a esse perigo? Infelizmente, não. É o que se conclui de uma pesquisa com 1 441 profissionais brasileiros — a maioria, clínicos gerais, cardiologistas e endocrinologistas da Região Sudeste, com atuação principalmente no setor privado — que acaba de ser apresentado no congresso Endodebate. O estudo constata que boa parte deles desconhece ou não utiliza métodos para aferir a saúde hepática e teve uma formação insuficiente a respeito: 92% não se recordam de ter aprendido sobre o tema na universidade ou apenas receberam noções básicas. Outra preocupação preocupante: menos de um terço dos médicos solicitou o exame padrão de ouro para apurar a gordura e seus danos ao fígado, a elastografia. E seis em cada dez não empregam ferramentas que calculam o risco de lesões hepáticas, disponíveis até mesmo em aplicativos de celular. “É preciso melhorar a formação e a atualização médica e sensibilizar a classe sobre o tamanho do problema da gordura no fígado”, diz o endocrinologista e coordenador de pesquisa Carlos Eduardo Barra Couri. “Estamos diante de uma doença que não só pode acarretar cirrose ou câncer como aumenta o risco cardiovascular, a principal causa de morte no país.”
Há, contudo, avanços. Ainda que métodos como a elastografia não estejam tão disponíveis no Brasil, exames de sangue e imagem ajudam a visualizar o bom funcionamento do órgão. Por isso, não só os hepatologistas, mas também outros especialistas têm insistido em contemplar mais o fígado dentro dos check-ups periódicos. A conscientização também precisa vir ao público, como demonstrar um estudo encomendado pelo Instituto Brasileiro do Fígado (Ibrafig) que avalia a prevenção e os cuidados tomados entre 1 995 cidadãos. “A maioria desconhece que as hepatites virais também são causas importantes de cirrose e câncer hepático, o que a leva a negligenciar a vacinação para hepatite B e testagem para as hepatites B e C”, afirma o hepatologista Paulo Bittencourt, professor da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e idealizador da investigação,A Lanceta .
A reversão do cenário ruim encontrado tanto entre médicos como pacientes passa pela disseminação de informação correta e por políticas públicas — combinação que contribui inclusive para reduzir os custos exorbitantes dos tratamentos dessas condições em seus ganhos mais graves. “Existem estratégias simples para mudar esse panorama, como capacitação dos profissionais para aconselhamento da população, estímulo ao controle do álcool, à perda de peso e à alimentação saudável, além de exames laboratoriais, inclusive disponíveis no SUS”, diz Bittencourt. A julgar pela lista de tarefas que o fígado executa pelo corpo humano, é prudente conceder-lhe a prioridade que merece. Ele não pode ser esquecido.
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