Saiba quem é Eliete Bouskela, primeira mulher a presidir a Academia Nacional de Medicina
SÃO PAULO (SP) – O segredo de Eliete Bouskela, primeira mulher a presidir a Academia Nacional de Medicina (ANM), em 194 anos, é gostar de pessoas. “Uma vez, me perguntaram o que acho fundamental em alguém que queira cursar medicina. E eu respondi sem nenhuma dúvida: gostar de gente. Se você não gosta de gente saudável, não gosta de gente doente”, diz a mineira de 73 anos.
Eliete nasceu em Uberlândia em 15 de fevereiro de 1950 e, no início dos anos 1960, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. Foi a primeira grande mudança da garota, mas não de seu pai, Elie Bouskela. Nascido no Egito e educado na França, o mascate judeu decidira, aos 18 anos, tentar ganhar a vida nas Américas – e, então, veio para o Brasil.
“Meu pai achava que, se eu quisesse casar, casava; se não quisesse, não casava; se eu quisesse ter produção solo também, tudo bem, desde que eu estudasse e progredisse”, diz Eliete. “Ele sempre esteve ao meu lado de uma maneira muito moderna.”
Quando ela se candidatou à ANM, em 2004, e seguiu o ritual de visitar os 100 membros da academia, não se intimidou por 96 deles serem homens. Primeiro, porque adora desafios. Segundo, porque aprendeu com seu Elie que podia fazer tudo que quisesse. “Eu fui criada assim. Eu resolvi que queria aquilo, então, eu podia”.
A chegada da Batwoman
Eliete considerou cursar Direito. Pensava em atuar como advogada, em crimes bárbaros, cuja complexidade desafia a lógica, mas mudou de área. Iria trabalhar com a complexidade humana, sim, porém, na medicina.
Durante a graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), surgiu uma oportunidade de monitoria em fisiologia cardiovascular com o professor Antônio Paes de Carvalho.
No laboratório, analisando o coração de coelhos, percebeu que gostaria de estudar microcirculação, assunto ainda pouco conhecido. “Você tem que ir para a Mayo Clinic”, orientou o colega Ayres da Fonseca Costa, se referindo ao famoso instituto de pesquisa americano. Ao se formar, pediu ajuda a Carlos Chagas Filho e conseguiu uma bolsa para fazer pesquisa nos Estados Unidos.
A ida para a Mayo Clinic foi a segunda grande mudança de Eliete, mas não saiu como planejado. Ela detestou o frio de Minnesota, seu orientador não trabalhava com estudos in vivo e estava no processo de transferência para a Universidade de Washington, em Seattle.
A saída foi trabalhar com o sueco Curt Wiederhielm, que estudava microcirculação em asas de morcego.
Tudo corria bem e ela considerava permanecer nos Estados Unidos, mas em 1977 seu pai adoeceu. Eliete voltou para o Brasil e trouxe dezenas de morcegos.
“Eu viajei de Seattle para Washington com 20 morcegos numa caixinha de papelão. Quando passei pelo raio-x, a moça perguntou o que eu estava carregando e respondi que eram pintinhos. Viajei com eles embaixo do meu assento no avião. Cheguei ao aeroporto e estava lá o veterinário me esperando com mais 30 morcegos, mas eu tinha licença só para 20. Fui ao guichê da Varig com os 50 em uma caixa e a atendente disse: ‘Precisamos contar esses morcegos’. Eu respondi: ‘Eles vão voar. Você vai abrir a caixa aqui?’. Obviamente, não abrimos.”
A pesquisadora montou um morcegário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e ficou conhecida como Batwoman. O medo de os alunos contraírem raiva, contudo, levou-a a substituir os animais por ratos, camundongos e hamsters, que, como brinca, não tinham tanto glamour.
O obeso não se acha doente
Em 1987, a falta de recursos para pesquisa e o divórcio do primeiro esposo suscitaram o desejo de uma nova mudança. Eliete escolheu a Suécia pela curiosidade sobre o funcionamento de um país social-democrata e embarcou com o filho Rodrigo.
Dessa vez, foram sete anos no exterior. Mulher e estrangeira, sentiu-se preterida por estudantes e professores da Universidade de Lund. Ninguém a queria como orientadora, seus projetos eram negados. Aos poucos, Eliete percebeu que não se sentia pertencente e tampouco útil ali e, em 1994, regressou ao Brasil acompanhada do filho, do esposo, o pesquisador sueco Erik Svensjö, e da caçula, Kristina.
Foi nesse retorno à Uerj que uma nova frente de pesquisa teve início. Além de ampliar os estudos com microcirculação e diabetes, Eliete passou a estudar obesidade e a realizar ensaios clínicos. Era um novo passo no desafio da complexidade.
“A obesidade sempre foi uma doença que me fascinou porque é um desafio constante, a começar pelo fato de que o obeso, muitas vezes, não se acha doente”, diz. “Uma vez terminado o tratamento, a possibilidade de o indivíduo voltar a ser obeso é muito grande.”
Um certo grau de coragem
O foco em especialidades gerou em Eliete a vontade de se atualizar sobre outras áreas da medicina. Ela soube que, na ANM, poderia participar de discussões e ter contato com grandes nomes e, assim, tentou uma vaga.
“As mulheres admitem de saída que não vai dar certo e, quando partimos da premissa de que aquilo não vai dar, não tentamos. Todas as mulheres que se candidataram à academia foram eleitas, mas muito poucas se candidatam”, comenta. “Dos quase 700 membros desde a criação, em 1829, só elegemos dez mulheres. Acho que olham para isso e pensam: ‘Esse negócio não é para mim’. Você tem que ter um certo grau de coragem para se candidatar, se apresentar e achar que pode dar certo.”
O contexto social também pesa. Quando visitou a acadêmica Léa Coura, como parte da sua candidatura para a academia, levou consigo artigos da Revista Science mostrando que a mulher só crescia na carreira científica em países onde havia empregadas domésticas e babás.
Ainda hoje, como diretora científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e integrante do comitê de assessoramento do CNPq, Eliete observa que, nas classes mais baixas de bolsas, há igualdade entre os gêneros, mas nos incentivos de ponta o número de mulheres diminui progressivamente.
Identifica, porém, uma mudança em curso. A presença de mulheres como Helena Nader, Eloisa Bonfá, Denise Pires de Carvalho e, agora, ela mesma à frente de grandes instituições sinaliza, para ela, a abertura de caminhos. “Agora que estamos colocando as manguinhas de fora”, diz.
Na presidência da ANM, pretende reforçar o papel da instituição enquanto órgão de aconselhamento sobre saúde. “Se o governo vai nos ouvir ou não, é uma segunda coisa. Se a gente não fala, não tem chance de ser ouvido.”
Ela também quer propor discussões sobre a formação médica. Está preocupada com a qualidade dos cursos de medicina, com o desinteresse dos recém-formados pela residência e com a atualização dos profissionais no mercado.
Por fim, pretende debater a relação médico-paciente. “Não devemos abandonar a luta por maior reconhecimento do médico, mas os profissionais também tem que fazer algo a mais. Quantos médicos, hoje, efetivamente, examinam e conversam com o paciente?”, questiona.
“Você faz uma medicina massificada e, evidentemente, não é reconhecido. É claro que existem médicos maravilhosos, mas, hoje, esses profissionais não são maioria.”
Da Revista Cenarium Amazônia*