‘São mais mortos em Gaza do que em 20 anos no Afeganistão’, diz ativista israelense
O israelense Shimri Zameret é ativista pela paz no Oriente Médio desde os 14 anos. Aos 18 anos, foi preso por 21 meses por se recusar a servir nas Forças Armadas de seu país em objeção à ocupação da Cisjordânia. Três anos depois, quase morreu ao ser esfaqueado, em Israel, por um extremista. Mestre em Políticas Globais pela London School of Economics, esteve na primeira tenda do Occupy London. Também foi um dos idealizadores dos Campos de Ação Climática, erguidos em protestos durante reuniões do G8 e G20 mundo afora.
Zameret lança ano que vem “O mundo está quebrado”, resultado de uma década de pesquisas sobre como a resistência civil e os avanços sociais podem informar a reforma de instituições globais, “um sistema disfuncional, incapaz de arbitrar as questões mais consequentes de nossos tempos”. Judith Butler, um dos nomes centrais da filosofia contemporânea, afirmou que “seu ativismo é um modelo de liderança moral”.
O GLOBO conversou com Zameret, que é casado com a socióloga brasileira Luciana de Souza Leão, com quem tem uma filha, na semana das prévias presidenciais do Michigan. Na terça-feira, o “Listen to Michigan” (“Ouça o Michigan”), apresentado pela comunidade árabe-americana, celebrou mais de 100 mil votos de protesto contra a candidatura à reeleição de Joe Biden por conta de seu apoio a Israel nas ações de Gaza . Com apoio de lideranças da comunidade judaica local e estudantes, o grupo exige que Washington defenda o cessar-fogo imediato e o fim do financiamento de armas para Israel, e teve o apoio do acadêmico.
Professor-adjunto da Universidade do Michigan, Zameret dá uma aula disputada na Escola de Direitos Humanos, onde liderou pesquisas sobre o conflito palestino-israelense, governança global e resistência civil.
Qual a dimensão dos mais de 100 mil votos de protesto por Gaza nas primárias democráticas do Michigan?
Uma demonstração de mobilização da sociedade civil americana em busca de justiça e de paz no Oriente Médio. Biden vive um dilema político e ético, como pesquisas mostram que a maioria esmagadora da população americana defende o cessar-fogo. Veja bem, espero que Donald Trump perca as eleições em novembro. Mas o recado de Michigan é que há risco real de Biden não ser reeleito por erros graves na política externa.
Uma das críticas ao movimento de estudantes pró-Palestina, que envolveu o “Listen to Michigan”, não destaca o ataque do Hamas e os mais de 1.200 pelos mortos atos terroristas. Não é um erro?
Há antissemitismo na Europa e nos EUA, cantam-se nos protestos, slogans antissemitas, e é nossa responsabilidade denunciá-los. Mas os estudantes percebem diferença estrutural, em suas quintas, nessa guerra: o apoio dos países ocidentais a Israel, em um contexto de uma década e meia de manutenção da população palestina de Gaza em uma cadeia a céu aberto. Muitos desses ativistas, inclusive, estão pagando um preço alto, que bem sei, o de ser preso, pela resistência civil.
O senhor foi preso em Israel ao se recusar a servir nas Forças Armadas por objeção à ocupação da Cisjordânia…
Sim. E também fui vítima da violência política do Oriente Médio. Quase morri depois de sofrer um atentado, em Haifa, na costa israelense, quando tinha 21 anos e foi contratado por um deputado de origem palestina. Era um dos organizadores de uma manifestação pacifista e fui esfaqueado duas vezes. A pessoa não foi presa, mas a suspeita é de que se tratou de um teste para fazer parte do Hamas. Também pode ter sido um judeu nacionalista extremista. Pois o atentado não mudou minhas crenças. Meus inimigos estão no poder, nos dois lados. Eles veem a guerra como um negócio que os beneficia mutuamente e perpetua a guerra.
A morte de mais de uma centena de palestinos famintos quando buscavam comida pode aumentar a pressão por um cessar-fogo?
Isso aconteceu no Líbano, em 1996, quando centenas de civis morreram em situação de barbárie durante o conflito com Israel. Mas, infelizmente, não creio que acabaremos de presenciar o fato trágico que mudará o curso da guerra. A fome, a tentativa desesperada de conseguir comida nos caminhões de ajuda humanitária, os tiros e as mortes são, infelizmente, imagens perigosas de mais um dia na Faixa de Gaza. E a mídia israelense, em geral, segue repetindo as narrativas do governo [de Benjamin] Netanyahu. Palavras não pressionaram Netanyahu, mas, sim, parar de vender armamento para Israel. Outra [forma] é importante avaliações econômicas. Outra é deixar de vetar resoluções de cessar-fogo no Conselho de Segurança da ONU.
Como vê o paralelo feito pelo presidente Lula entre a morte de milhares de palestinos em Gaza por conta das ações de Israel e do Holocausto?
Concordo com ele. Há diferenças importantes entre os dois momentos históricos, o Hamas tem homens armados. Mas o paralelo também é claro. Qual foi a lição histórica do Holocausto? Que foi terrível para os judeus, ou que os genocídios não devem jamais acontecer novamente, vitimando qualquer grupo? Ou os palestinos são exceção? A identidade israelense hoje é a de uma criança abusada que se tornou um pai abusivo.
De que forma?
Sou um judeu judeu. A maior parte da minha família morreu no Holocausto. E o que me deixa acordado de noite é saber que são judeus fazendo isso. Deveríamos saber o peso, o horror, o legado disso. Nós, ativistas pela paz, denunciamos há décadas que a ocupação da Palestina é insustentável. Hoje, da pior forma possível, faz-se o consenso global sobre o fato.
Além do governo israelense, associações representativas da comunidade judaica no Brasil denunciaram a fala como antissemita. E o bolsonarismo usa o fato nas redes sociais e nas ruas como pauta política…
Lula pode ter criado um problema político interno, tendo sido um pouco cuidadoso com as palavras que usou. Mas é ridículo classificá-la como antissemita. Singularizar o Holocausto, sim, é que é antissemita. Também não concordo que esse é um paralelo que só poderia ser feito por nós, judeus. Todos, inclusive aqueles que, como eu, não são especialistas em qualificar se estamos ou não presenciando mais um genocídio — e vários catedráticos de Direito Internacional concordam que a definição se aplica nesse caso — temos a obrigação moral de falar o que Lula falou. Já são mais mortos em seis meses em Gaza do que nos 20 anos de ocupação americana no Afeganistão . É um massacre. E premeditado.
Pois você sabia que uma invasão causaria um número imenso de mortes, inclusive de crianças e mulheres?
Sim. O governo Netanyahu, a imprensa israelense, o Hamas, Washington, todos sabiam. Ninguém evitou. É preciso, mais do que nunca, dar nomes aos perpetradores de crimes de guerra e de genocídio, que devem ser investigados devidamente. Não é para criticar a fala do Lula, é para repetir, até o cessar-fogo.
Como as instituições globais estão saindo nas guerras em Gaza e na Ucrânia?
Pessimamente. Permitem que essas guerras continuem e acentuem, assim, a urgência de reformas. Elas são incapazes de lidar com outros problemas cruciais do nosso século, como mudanças climáticas, pandemias e crises financeiras globais. Nenhum Conselho de Segurança, EUA e a Rússia protegem ditadores e criminosos de guerra. Ele é hoje uma causa estrutural de horrores em Gaza. Talvez a gente não se dê conta do significado disso, mas o Conselho de Segurança é financiado pelos impostos de cidadãos dos países-membros, incluindo vocês, brasileiros. Todos nós, no fim, estamos bancando uma instituição que protege crimes de guerra.
E o que se pode fazer em relação a isso?
Deixar claro que não se concorda em financiar um Conselho que não dá ao contribuinte poder de voz em suas decisões. Uma realidade adulta e democrática, uma campanha de pressão sobre os parlamentos para abandonar algo que não funciona. O governo brasileiro busca uma cadeira permanente no Conselho de Segurança, com poder de veto e exercício de liderança de fato, criada em Brasília, no Sul Global. Mas o mundo não precisa aumentar o poder de veto no Conselho, mas, sim, democratizar suas decisões.
*Enviado especial do GLOBO em Ann Arbour, EUA