Spotify e outras redes de música abrigam canções com conteúdo racista, misógino e de ódio
O Spotify, principal plataforma de streaming de música do mundo, abriga contas com músicas e álbuns com conteúdo extremista, influenciados sobretudo pelas culturas incel e redpill. As músicas são compartilhadas também em outras plataformas, estendendo para essas bases de compartilhamento discursos de ódio que já eram disseminadas em redes sociais e aplicativos de mensagens como o X (ex-Twitter), TikTok ou o Thread.
Incel se refere a uma abreviação no inglês para “celibatários involuntários”, aqueles que culpam as mulheres por não conseguirem ter relacionamentos ou relações sexuais. O grupo dos redpill tem este nome em referência à pílula vermelha da série de filmes “Matrix” (uma representação da escolha entre abraçar a verdade dolorosa e a ignorância abençoada) e prega a superioridade masculina sobre as mulheres. O Spotify diz que tem regras para remover conteúdos que incentivem a violência contra um grupo de pessoas com base no sexo ou promova discursos de ódio. Mas ressalva que “o contexto é importante” e o que não tem claramente estas intenções pode continuar na plataforma.
A invasão à conta de uma rede social da primeira-dama da República, Rosângela da Silva, na semana passada, mostrou como o Spotify, embora pouco associado a este tipo de conteúdo, também é usado para a propagação de discurso de ódio e ideias extremistas. Um dos alvos de um mandado de busca e apreensão cumprido pela Polícia Federal um dia após o ataque produzia músicas com letras racistas, misóginas e com referências nazistas.
“Artista verificado”
João Vítor Corrêa Ferreira, morador de Ribeirão das Neves (MG) e suspeito no ataque a Janja, era dono do perfil “Maníaco”, em redes sociais como YouTube, Deezer e Facebook, com foco em produção de música. Mas era no Spotify que ele era classificado como “artista verificado” e tinha 4,4 mil ouvintes mensais e quatro álbuns com letras ofensivas. A plataforma excluiu o conteúdo após questionamento do GLOBO sobre a existência das músicas.
Uma das músicas defendia a pureza da “raça ariana” e atacava a miscigenação — mesma tese que embasou as políticas de Adolf Hitler na Alemanha nazista. Outra dizia que “mulher gosta de porrada” e “se resume a dois meros buracos”. Numa terceira, o autor associava religiões de matriz africana, nordestinos, negros e a África à pobreza.
Outro artista com conta verificada, sugerido pelo Spotify para os ouvintes de “Maníaco”, tem músicas com a marca do ressentimento masculino, como no verso “diz que é conservadora, mas é conservadia/ preserva a tradição da velha hipocrisia”.
Outros trechos retratam o sentimento de fracasso diante das expectativas da sociedade, tema constante entre os incel: “Eu não tenho um trabalho, eu não tenho namorada/ tudo o que faço eu falho, nada do que eu faço agrada/ a minha mãe me acha estranho, e o meu pai chora no banho”.
O termo incel é citado nominalmente em outra canção, que diz “estou condenado a sofrer/ por algo que não pude escolher/ e tenho que conviver/ minha existência é cruel/ na terra ou no céu/ a minha essência é incel”.
Teorias conspiratórias vinculadas ao antissemitismo marcam outro perfil identificado pelo GLOBO no Spotify. “Viva a castidade. Minhas dez esposas mantiveram a virgindade. Se eu comprei do pai delas, é minha propriedade”, diz um dos trechos. “O mundo da pornografia controlado por judeus, eu vou fazer no-fap obrigatório em nome de Deus”, ainda diz a letra em referência à abstinência de masturbação e privação de pornografia — práticas comuns em adolescentes incels.
Procurado, o Spotify afirmou que “nossas regras de plataforma de longa data deixam claro que não permitimos conteúdo que promova o extremismo violento ou conteúdo que incite à violência ou ao ódio contra um grupo de pessoas com base no sexo. Após análise, removemos diversas músicas por violarem nossas políticas. Como sempre, o contexto é importante e o conteúdo que não incita claramente à violência ou ao ódio poderia permanecer na plataforma.”
“Apito de cachorro”
Músicas com letras de ódio são o novo capítulo de uma disseminação de discursos extremistas que acompanha a multiplicação de redes sociais e plataformas pela internet. O TikTok, rede social mais popular entre os adolescentes brasileiros, é campo de compartilhamento de apologia do nazismo por expressões e símbolos aparentemente inocentes, para a maior parte das pessoas, mas que têm relação com a ideologia hitlerista. A prática ficou conhecida como “apito do cachorro”, referência ao instrumento que emite um som inaudível para humanos.
O Facebook possui diretrizes estabelecidas para remover discursos de ódio expostas no site da Meta, a controladora da plataforma. Mas o lançamento em julho do Threads, que prometia “conversas positivas e produtivas”, não impediu o novo aplicativo da Meta de receber rapidamente pessoas ligadas à disseminação de informações falsas e discurso de ódio em outras plataformas, segundo levantamento da Bloomberg.
O Threads foi lançado para ser um contraponto ao ambiente de polarização no X. A plataforma de troca de mensagens pode ter abandonado o nome de Twitter. Mas não foi abandonada por perfis extremistas. Investigações de ataques a escolas recentes no Brasil indicaram que o X. foi usado por alguns dos criminosos para compartilhar conteúdos com apologia a este tipo de crime.
Leonardo Nascimento, que pesquisa ambientes extremistas na Universidade Federal da Bahia, diz que a proliferação do discurso de ódio é um desafio para autoridades e pesquisadores pela forma como esses indivíduos manipulam símbolos e códigos para enviar mensagens cifradas e potencialmente atrair público.
— Paradoxalmente, o uso de plataformas como Spotify possibilita que essas ideias ganhem visibilidade para além dos esconderijos digitais. É preciso coibir tais conteúdos e, ao mesmo tempo, não deixar que as denúncias virem troféus para eles — diz Nascimento.
Letícia Oliveira, que monitora grupos extremistas na internet e fez parte de um grupo de trabalho do governo de transição sobre ataques a escolas, alerta que a linguagem nessas músicas é compartilhada por usuários do Discord, aplicativo usado por gamers que virou ferramenta para envolver adolescentes em um submundo de violência.
— A gente tem muito uso nessas letras de termos usados na machosfera, essa rede online em que se articulam e se organizam os redpills e incels. Há muitas referências a memes nesses grupos — afirma.
Em nota, o Discord afirmou que “tem agido proativamente para monitorar e banir grupos que violam os termos de serviço”. Ainda diz que segue “colaborando com as autoridades locais e que 99% dos usuários da plataforma não violaram as nossas políticas nos últimos seis meses”. Por fim, conclui que “isso reforça nosso comprometimento em sermos um lugar saudável e inclusivo, onde as pessoas têm interações positivas e socializam com seus amigos e comunidades”.
O GLOBO