‘Tribunal do cancelamento’: como o impacto das redes sociais está afetando a saúde mental de jovens e adultos

No próximo mês, o Facebook, rede social que revolucionou a forma como a interação de seres humanos no mundo virtual, completou 20 anos. Nas duas décadas, a plataforma chegou a cerca de 3 bilhões de usuários ativos, mais de um terço da população mundial, e novas redes surgiram e se consolidaram. Mas, apesar de terem se tornado parte indiscutível da sociedade – é difícil conhecer alguém que não mantenha ao menos um perfil online –, todos os impactos das plataformas ainda estão longe de serem totalmente compreendidos.

Um dos comentários mais recentes que tem acendido o alerta de especialistas é conhecido como “tribunal da internet”. Trata-se do excesso de julgamento nas redes que se disseminam de forma rápida, em grandes proporções e dita quem está certo e errado para “cancelar” os “culpados” – numa espécie de boicote que nem sempre segue uma avaliação justa.

A intenção inicial, quando o termo “cancelamento” se tornou mais popular, em 2019, era responsabilizar pessoas por comportamentos por vezes até crimes, como casos de assédio e preconceito. Mas, com o volume cada vez maior de informações, a circulação de notícias falsas e a sensação de impunidade para quem se aproveita da distância da tela para agredir ou outro sem filtros, o cenário mudou.

Especialistas ouvidos pelo GLOBO explicam como o clima constante de alerta que se criou hoje nas redes devido à “cultura do cancelamento”, que atinge pessoas que em alguns casos têm intimidades expostas até mesmo contra a própria vontade, afetando a saúde mental dos usuários.

— Esses julgamentos podem ser invejados do ponto de vista dos valores das pessoas, do funcionamento de grupo e do que chamamos de efeito manado, quando as pessoas começam a te criticar de forma conjuntamente sem nem conseguir avaliar ao certo o que elas estão julgando — diz Gustavo Estanislau, doutorando em Psiquiatria pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e pesquisador do Instituto Ame Sua Mente, e continua:

— Do ponto de vista de desdobramentos de saúde mental, é bastante comum que uma pessoa comece a se sentir paranóica, desconfiada. Ela passa a achar o tempo todo que as pessoas estão falando sobre ela, pensando nela. Essa sensação constante aumenta um estado de alerta que gera ansiedade, uma preocupação social excessiva: ‘Será que eu tenho sido adequado para as pessoas? Será que eu sou querido?’

A longo prazo, pode levar a estágios mais drásticos de saúde. Dois casos do tipo, que levaram as vítimas a tirarem a própria vida, repercutiram na mídia no último mês. Jéssica Caneda, de 22 anos, havia sido alvo de críticas online após a circulação de imagens que simulavam, falsamente, conversas íntimas dela com o humorista Whindersson Nunes.

Já PC Siqueira, de 37 anos, um dos influenciadores mais conhecidos no Brasil, foi “cancelado” após publicações no X (antigo Twitter) exibirem uma suposta conversa em que compartilhava fotos íntimas de menores. A Polícia Civil de São Paulo, no entanto, não encontrou nenhum registro que fosse capaz de incriminá-lo, e o influenciou alegava se tratar também de imagens manipuladas. Ambos sofreram de depressão.

— Ao longo do tempo, essas questões não vão ser resolvidas, o que pode ser muito difícil quando as informações são pulverizadas e o público é enorme, você começa a passar de um estado de alerta e ansiedade para um estado de jogar uma toalha. De desânimo, de falta de motivação para tentar reverter esse quadro. Uma pessoa às vezes pode começar a se identificar com os julgamentos negativos. Essa tristeza geralmente não acontece de pronto, mas ao longo do tempo — diz Estanislau.

Jovens em maior risco
Guilherme Polanczyk, professor de Psiquiatria da Infância e Adolescência na Universidade de São Paulo (USP), destaca ainda que esse impacto do julgamento alheio e constante nas redes é mais nocivo entre os jovens, que estão no momento de descobrir quem são:

— A adolescência é esse momento de desenvolvimento da autoimagem, da identidade do indivíduo, e a opinião dos pares, da sociedade, se torna muito importante. Então ele vai ficar mais suscetível com essas opiniões. Só que são opiniões muitas vezes dadas sem muita reflexão. As pessoas colocam rapidamente de uma forma impulsiva qualquer impressão, o que para uma pessoa que está do outro lado pode ter um impacto enorme em como ela se vê.

Ele explica ainda que o “cancelamento” não é algo necessariamente novo – já foi apresentado em dinâmicas escolares, por exemplo, mas que ganha novos contornos nas notícias devido ao número exponencialmente maior de pessoas envolvidas:

— As dinâmicas dos grupos de adolescentes têm muito a ver com quem está dentro e quem está fora. No momento que excluem uma pessoa, reforçam o pertencimento dos que estão dentro. A cultura do cancelamento é isso, um grande grupo de pessoas unidas contra um indivíduo, dando esse feedback de que uma pessoa não tem qualidades, merece ser restaurada da sociedade. Para um adolescente, especialmente nesses momentos mais sensíveis da adolescência, isso é extremamente forte. O que acontece é que na rede social isso tem proporções muito maiores. Eventualmente vêm a essas situações muito drásticas, como o suicídio, mas geralmente o cancelamento é o último pingo num copo que já está cheio. É alguém que já estava fragilizado, que já passou por uma ou outra situação de estresse, mais suscetível.

Exposição excessiva e falta de regulação ética
Um dos fatores que intensificam esse interesse é o fato de as pessoas se exporem cada vez mais nas redes sociais, o que abre espaço para que suas intimidações sejam utilizadas contra você, diz Anna Paula Zanoni, doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Paraná ( UFPR):

— Essa exposição nociva vira um campo para as discriminações, ameaças, perseguições. Esse tribunal online, em que as pessoas emitem opiniões sem filtros, acaba sendo palco de situações de ações humilhantes, que é um dos sentimentos mais impactantes, traumáticos e que abalam a autoestima em termos de saúde emocional. Uma pessoa coloca uma foto, conta algo pontual de sua vida, e aquilo vai sendo reproduzido, replicado, interpretado de diversas formas, muitas vezes distorcidas e pertinentes.

Para ela, isso ocorre pelo fato de ainda não haver “regulações éticas” bem determinadas no mundo digital, o que leva os usuários a dizerem coisas que não falariam ao vivo:

— A internet ainda é um lugar sem regulamentações éticas e morais claras. As pessoas se conectam por meio de perfis, não é da mesma forma que por meio de relações pessoais, frente a frente. Temos uma regulação cultural na convivência face a face do que é adequado, o que não é, o que é aceitável. Existem regras mais claras também do que pode ser exposto da intimidação, da privacidade. Isso tudo no mundo digital está sendo pensado muito recentemente.

Porém, mesmo se não houvesse o tribunal do cancelamento, Estanislau pontua que uma exposição além da conta pode trazer também outros impactos para a saúde mental. Isso porque muitas vezes as publicações retratam uma vida perfeita que não existe, o que leva os usuários a se compararem com algo inatingível.

— Vejo muitas pessoas tentando criar uma vida que eles não têm, e isso gera para os outros uma expectativa alta em cima das coisas, uma sensação de que as pessoas têm mais sucesso, são mais felizes do que elas realmente são. Mas para a própria pessoa também gera uma sensação de que nada é suficiente, porque ela vê esse retrato perfeito dela mesma, que não existe, e acaba se sentindo como uma impostora.

A para solução de todos os impactos contratados, concordam os especialistas, é por meio de uma maior educação digital. Apesar de o tema ter ganhado mais espaço ultimamente, ainda está longe do ideal frente ao tamanho do papel das redes nas nossas vidas, dizem.

— O caminho é a consciência digital, de como esse universo funciona, quais os riscos da exposição. A intimidade nos divide em locais, com pessoas e em situações cumpridas. Se temos algo que é precioso para nós, não podemos soltar no mundo sem nenhum cuidado. É um processo que passa pelo pessoal, de autoconhecimento, de interiorização. Mas também coletivo, pelo entendimento da forma como esse universo funciona — afirma Zanoni.

Polanczyk ressalta ainda a importância do assunto entrar no currículo escolar e ser abordado entre os mais novos antes mesmo de eles começarem a usar as redes:

— A educação para o uso das redes sociais e da internet precisa ser muito cedo para que as crianças, que muitas vezes entram nas redes com 12, 13 anos, tenham as ferramentas para entender como elas devem se colocar nelas. Não só no sentido de se expor, mas nas suas atividades: o que fala em seus comentários, suas interações com os outros, como se comportam.

O GLOBO

Postado em 6 de janeiro de 2024