Uma dor animal: luto dos bichos é desvendado por novo conjunto de estudos

Nas relações milenares que se estabeleceram entre os humanos e outros animais, muitas semelhanças já foram equivocadamente mapeadas no campo que estuda o comportamento das espécies. A tentativa sempre foi de partir da compreensão sobre o que move as pessoas para decifrar as emoções emocionais dos demais seres que habitam a Terra. Assim, repetiu-se por muito tempo que as piruetas de golfinhos seriam uma exibição de pura alegria, mito que as pesquisas trataram de derrubar ao desvendar que, por trás dos saltos acrobáticos, reside uma necessidade acentuada de se socializar. Enveredando pela mesma trilha, comprovou-se que as insistentes lágrimas do crocodilo não tinham nada a ver com depressão, mas com um mecanismo que pressionava uma glândula enquanto eles devoravam suas presas (daí a expressão empregada no mundo humano para o pranto fingido).

O mais recente e notável deles habita o delicado terreno das emoções mais fundas, aqueles que abatem os indivíduos e, às vezes, os mergulham em uma tristeza que não passa — caso do luto. Por muito tempo, se acreditou que os animais não atravessavam essa fase que dilacera o peito diante da perda de alguém próximo, uma crença que vem sendo dissolvida diante de um novo conjunto de estudos que chacoalha com prova a velha acreditada. Um trabalho recém-publicado na revista Nature se deteve sobre o cérebro humano justamente quando enfrentou a dor da morte de um ente querido — dura etapa em que, segundo se observou, a região conhecida como córtex cingulado, responsável por sentimentos regulares, se via em plena atividade, despertando impulsos de compaixão e empatia imersos em tristeza.

A constatação dos investigadores, um grupo do Centro de Neurologia e Psiquiatria de Tóquio em parceria com a Universidade de Milão, veio após um minucioso monitoramento em tempo real do sistema nervoso, por meio de ressonância magnética. Qual não foi a surpresa quando se concluiu no experimento que a mesma porção do encéfalo de outras espécies, como pássaros e roedores, ficava em ebulição ao se darem conta da morte de um semelhante com quem mantinham contato. “Com base nessa descoberta, podemos afirmar com mais certeza que muitos outros animais sofrem com o luto”, explica o biólogo Fábio Hepp, da UFRJ.

As investigações científicas sobre o luto elevam um degrau no entendimento do cérebro animal — que é, no caso de vários deles, mais complexo do que se pintava. Afinal, para reconhecer que um integrante do bando se foi, é preciso antes conseguir assimilar a consciência da própria existência. É isso que faz um ser diferenciar a vida da morte. Evidentemente que não são todos os animais que alcançam tal estágio. “O luto ocorre apenas com espécies sociais, que vivem em comunidade e se aproximam mais geneticamente dos humanos, como caninos e felinos”, explicou o primatologista Tiago Falótico. “Se dar conta da falta de um membro do grupo é uma adaptação evolutiva que surgiu para evitar que outros indivíduos morram”, diz o cientista.

Conviver com filhos mortos é uma das características mais marcantes do luto animal. Cetáceos, como baleias, golfinhos e botos, costumam levar crianças na boca ou nas costas quando perdem a vida. Em um estudo amplamente citado, cientistas russos observaram uma beluga puxada pelo oceano o corpo inanimado de seu filho por quase uma semana, reproduzindo os mesmos movimentos e cuidados despendidos com filhotes saudáveis. Uma história próxima foi registrada nas águas da Austrália com golfinhos, que emitem sinais de sofrimento por cerca de duas semanas.

Nenhum animal, porém, prolonga tanto a tristeza quanto os elefantes — dois anos, até mais do que os humanos, cuja ferida fica aberta, em média, durante um ano. Uma razão essencial está no fato de esses mamíferos pesados ​​manterem o zelo sobre a prole por um tempo mais dilatado do que outras espécies, formando assim parentes mais firmes. Não raro, eles regressam ao local onde o corpo se encontra e tocam com a tromba até que só resta o esqueleto, metabolizando a perda aos poucos. Um estudo realizado por biólogos americanos na Quênia, na África, revelou que os elefantes apresentaram inclusive aumento da atividade de uma glândula sudorípara localizada entre a orelha e o olho, uma reação ao sofrimento. “É um processo cognitivo entender que aquele ser ao qual se devotou não está mais vivo”, acrescenta a bióloga Daniela Rodrigues.

O luto envolve altas doses de empatia, um sentimento que as espécies foram cultivando ao longo da trilha evolutiva em prol da própria sobrevivência. Quanto mais numeroso um grupo, maiores as chances de ele prosperar. No caso de animais domésticos, como cachorros, a capacidade de se colocar no lugar do semelhante é talhada pelos laços da convivência, estendendo-se aí ao próprio dono, um humano, com quem os caninos mantinham um elo desde os primórdios. Um estudo recente da universidade de Pádua reforça a ideia de que o pesar frente à morte não é para qualquer bicho — cães selvagens não costumam penar quando um colega de matilha se vai, ao passo que aqueles criados no ambiente de casas e apartamentos italianos chegam a apresentar sintomas de depressão, freando as brincadeiras e dando as costas à comida. O semblante triste é a manifestação visível de um incômodo que lateja por uns seis meses. E a ciência garantida: não são lágrimas de crocodilo.

VEJA

Postado em 31 de maio de 2023