19 anos de Lei Maria da Penha: o fim da violência de gênero está próximo?

Hoje, a Lei Maria da Penha completa 19 anos. Sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a legislação tem 46 artigos distribuídos em sete títulos e estabelece mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, em conformidade com a Constituição Federal (art. 226, § 8°).
A Lei leva o nome da farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que se tornou símbolo da luta contra a violência doméstica no Brasil após sobreviver a duas tentativas de feminicídio cometidas pelo próprio marido, em 1983. As agressões a deixaram paraplégica e, apesar das provas e da gravidade dos crimes, o agressor permaneceu impune por muitos anos, o que evidenciou a morosidade e a ineficácia do sistema de justiça brasileiro na proteção das mulheres.
Diante dessa omissão, Maria da Penha denunciou o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em resposta, a OEA condenou o Brasil por negligência e recomendou a criação de mecanismos legais específicos para enfrentar a violência doméstica. Essa recomendação foi decisiva para a elaboração e aprovação da Lei, que representou um marco no combate à violência de gênero no país.
De acordo com a advogada Flávia Regina Oliveira, especializada na área de impacto social e filantropia e sócia na área Mattos Filho 100% Pro Bono, a Lei representou um avanço jurídico significativo na proteção das mulheres no Brasil. A especialista destaca três principais pontos da legislação que contribuíram para esse marco:
“Acredito que o primeiro ponto fundamental foi o reconhecimento da violência de gênero, como uma violação dos direitos humanos, conforme previsto no artigo 6º da Lei, com base na Convenção de Belém do Pará, de 1996”, afirma.
Outro avanço importante, segundo a advogada, foi a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que possuem competência híbrida, ou seja, podem julgar tanto questões cíveis quanto criminais. Isso permite uma atuação mais integrada e decisões mais rápidas.
A Lei também ampliou o conceito de violência doméstica, que passou a abranger não apenas a agressão física, mas também as violências psicológica, sexual, patrimonial e moral. Com isso, a proteção às mulheres tornou-se muito mais abrangente.
Além disso, a aplicação da Lei não está restrita ao ambiente doméstico. Ela também se estende a relações afetivas já encerradas ou que não envolvem coabitação, como é o caso de ex-namorados, familiares, entre outros.
“As medidas protetivas de urgência também são um marco relevante: afastamento do agressor, proibição de contato, decretação de divórcio, concessão de guarda unilateral dos filhos e a suspensão do porte de armas, quando for o caso. E, por fim, destaco ainda a incorporação de políticas públicas de prevenção, assistência e educação, que são fundamentais para o enfrentamento da violência de gênero”, conclui a advogada.
Na visão de Flávia, o Brasil foi inovador ao sancionar a Lei Maria da Penha há 19 anos. “Há, sim, normas jurídicas em outros países que tratam da proteção da mulher, mas não com o mesmo nível de especificidade e estrutura que temos aqui”, diz. Ela afirma que a legislação é exclusiva e abrangente, algo ainda incomum no cenário internacional. Por isso, a Lei é frequentemente citada em debates internacionais sobre o tema.
No entanto, apesar do pioneirismo e de todos os mecanismos criados para impedir a violência contra a mulher, o Brasil segue sendo o 5º país que mais mata mulheres no mundo, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. O país só está atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número absoluto de assassinatos de mulheres motivados por questões de gênero.
O advogado e fundador do projeto Justiça para Todos, Renato Rocha, afirma que esse é um retrato cruel de uma realidade doméstica que envergonha o país. “Aqui, uma mulher é assassinada a cada duas horas. Em grande parte dos casos, por companheiros, ex-companheiros, namorados ou maridos. A violência contra a mulher segue sendo minimizada, relativizada e, muitas vezes, ignorada”, declara.
Para o jurista, o caso recente do ex-jogador de basquete que agrediu brutalmente a namorada em Natal, com 61 socos violentíssimos na cabeça e no rosto em apenas 34 segundos, é uma ilustração clara dessa barbárie, sustentada pela sensação de impunidade. “O vídeo das câmeras de segurança é assustador. A frieza do agressor, ainda mais. Esse tipo de violência extrema não começa com os socos. Começa com o controle, com a humilhação, com a normalização da dominação. Se não for interrompido a tempo, termina em morte”, lamenta.
Renato afirma que a Lei Maria da Penha foi um divisor de águas ao ampliar o conceito de violência, criar mecanismos de proteção e estabelecer o dever do Estado em intervir. Mas isso não é suficiente, para ele também é preciso garantir sua execução plena. “E isso exige investimento, formação continuada, estrutura de atendimento e fiscalização rigorosa. Infelizmente, em muitas cidades brasileiras, sequer há uma delegacia da mulher. E quando há, ela funciona sem equipe, sem estrutura e sem o mínimo de acolhimento”, defende.
Flávia Regina Oliveira explica que, do ponto de vista jurídico, ainda existem lacunas na Lei Maria da Penha, por exemplo, a ausência de uma previsão clara sobre o recurso cabível após a concessão de medidas protetivas em caráter cível. “Mas essas questões só entram em jogo depois que a mulher já denunciou a violência, ou seja, quando o crime já foi notificado e chegou às autoridades”, detalha.
A advogada também destaca os problemas estruturais como um dos principais desafios. “Muitas delegacias ainda não têm estrutura física e humana adequadas para receber essas mulheres. Também há uma enorme desigualdade regional na aplicação da lei e uma articulação ainda frágil entre os órgãos que compõem a rede de proteção”, afirma. Outro desafio é a dificuldade na coleta de provas, o que pode inviabilizar a responsabilização do agressor. “Ou seja, mesmo quando a mulher consegue denunciar, ela ainda enfrenta barreiras institucionais e jurídicas muito complexas”, diz.
Porém, para a jurista, o maior obstáculo, sem dúvida, é social, com uma alta subnotificação, especialmente nos casos de violência psicológica e digital, que estão em crescimento. Além disso, ela aponta a resistência cultural em reconhecer a gravidade da violência de gênero. “Os estereótipos continuam sendo reproduzidos, mesmo em 2025. A educação ainda é machista, e a mulher que denuncia a violência continua sendo revitimizada em diferentes espaços: dentro da família, no trabalho, nas instituições”, explica.
Correio Braziliense