Sangue à venda? As polêmicas da PEC do Plasma, que avança no Senado

Em 1976, o cantor e compositor Chico Buarque mostrava mais uma vez a sua genialidade na leitura social do Brasil ao lançar Vai Trabalhar, Vagabundo . Quase cinquenta anos depois, os versos “segunda-feira vazia / ganha no banco de sangue / pra mais um dia”, que relatam a venda da seiva vermelha para suprir necessidades financeiras, parecem refletir o debate que resultou na aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado da proposta de emenda à Constituição (PEC) 10/2022, mais conhecida como PEC do Plasma. Mercurial, o projeto teve sua votação adiada sete vezes diante de brigas acaloradas entre defensores e opositores sobre a possibilidade de empresas comercializarem o componente sanguíneo, usado na fabricação de medicamentos.

O imbróglio já teve grandes proporções para modificar um artigo da Constituição de 1988 que veda a retirada de órgãos, substâncias e tecidos humanos mediante pagamentos. Trata-se de um expediente legal para garantir que os brasileiros assolados pela pobreza, desemprego e desespero não tenham de recorrer à venda de sangue e afins para suprir o pão de cada dia. A PEC do Plasma provocou uma revolta de entidades que representam pacientes e evidências do próprio Ministério da Saúde . Antes da votação na comissão, Nísia Trindade, que comandava a pasta, afirmou que o governo trabalha “para que o sangue não seja uma mercadoria”. Atualmente, cinco países autorizam a doação de plasma remunerada: Estados Unidos, Alemanha, Áustria, Hungria e República Checa. No mês passado, o tema esteve em discussão no Parlamento Europeu. A decisão vitoriosa foi de que as doações sejam voluntárias e sem estímulos financeiros.

Por aqui, uma nova do texto foi apresentada e o tópico de discórdia foi suprimido para que entre em uma futura lei. “Modificamos o texto em relação à remuneração da coleta”, explicou à relatora do projeto, a senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB). A mudança não acalmou os ânimos. O plasma, fração do líquido que corre nas veias famosas por reunir proteínas, anticorpos e agentes coagulantes, exige alto nível de padronização e controle desde a coleta até seu destino rumo aos pacientes. Isso vem desde os anos 1980, quando a contaminação por vírus como o HIV já era um risco conhecido ao redor do mundo, principalmente após relatos de infecção em pessoas com hemofilia, condição que afeta a coagulação e é tratada com transfusões e medicamentos derivados desse componente sanguíneo.

O temor de uma queda de doações voluntárias para o sistema público — índice já aquém das metas — e a segurança do material são as principais preocupações de quem se opõe ao projeto. “Todo produto que o Brasil processa tem qualidade e passa por rigorosa supervisão da Anvisa”, disse a VEJA Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do governo. “A medida não vai aumentar a oferta de sangue, e ainda pode significar um pagamento.”

Os tratamentos à base de plasma são fundamentais para cidadãos com hemofilia, anemia falciforme, grandes queimaduras e cirrose, por exemplo. No Brasil, uma cadeia que envolve coleta, análise, envio para processamento no exterior e distribuição dos produtos obtidos passa pelas mãos do Sistema Único de Saúde (SUS) e até conta com apoio da iniciativa privada, mas existem gargalos. Um deles é uma dependência da etapa fora do país, que precisaria de uma substituição nacional. Há esperança nos laboratórios da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), fundada em 2004, porém ainda longe de estar a pleno vapor. Ela deve começar a entregar uma medicação para controle da hemofilia neste ano e prevê a oferta de outros hemoderivados em 2025. A estrutura, em Pernambuco, teve investimento de mais de 1,4 bilhão de reais.

Lacunas como essas foram levadas à sessão na CCJ e alimentaram os argumentos de quem defende a mudança da lei. “Torcemos para que a Hemobrás passe a cumprir o papel dela, mas, no momento, ela é uma empresa de logística”, diz Paulo Tadeu Rodrigues de Almeida, presidente da Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS). A questão ainda será levada ao plenário do Senado antes de ser votada na Câmara dos Deputados. E vai exigir reflexão e ponderação para não comprometer uma operação baseada no altruísmo que salva vidas.

VEJA

Postado em 17 de outubro de 2023